A liberdade de consciência foi incluída na futura Constituição tunisiana. Aprovado no dia 4 de janeiro por uma ampla maioria - de todas as tendências - de 149 deputados e rejeitado por somente 23 deputados, o artigo estipula que "o Estado é o guardião da religião. Ele garante a liberdade de consciência e de crença e o livre exercício do culto". Essa foi uma medida excepcional no mundo árabe, que ainda por cima foi votada por uma Assembleia dominada por islamitas representados pelo partido Ennahda, oriundo da Irmandade Muçulmana.
Em troca de uma concessão, "o Estado é o protetor do sagrado", o texto definitivamente deixa de lado a charia – a lei islâmica - , um debate que aliás já foi enterrado pelo Ennahda: a Tunísia é um "Estado civil", como especifica o preâmbulo da Constituição também aprovada. Na segunda-feira (6), o delicado capítulo dos direitos e liberdades confirmou essa orientação, com a inclusão da igualdade entre os cidadãos e as cidadãs, "iguais perante a lei sem discriminação". Ainda que limitada à cidadania, essa medida, aprovada por 159 votos entre 169 votantes, foi louvada por Alhem Belhadj, figura da Associação Tunisiana das Mulheres Democratas, como "uma vitória".
Tortura, um "crime imprescritível"
As "liberdades de opinião, de pensamento, de expressão, de informação e de edição estão garantidas", assim como o direito sindical e o direito de greve, ou ainda "a inviolabilidade das moradias, a confidencialidade das correspondências, das comunicações e dos dados pessoais". A tortura "moral e física", classificada de "crime imprescritível", foi proscrita. É proibido privar de sua nacionalidade um cidadão, exilá-lo, extraditá-lo ou impedi-lo de voltar ao seu país, como aconteceu no passado. Aos poucos os deputados tunisianos vão avançando na expectativa de concluir e aprovar (com dois terços dos votos) a Constituição no dia 14 de janeiro, exatamente três anos após a queda de Zine el-Abidine Ben Ali. Em dezembro, a Tunísia teve o aniversário de sua revolução marcado pela morosidade.
Dos 146 artigos da futura Constituição, até o momento um terço do caminho foi percorrido. Os debates não são isentos de nervosismo ou de deslizes. No domingo, a oposição laica conseguiu a aprovação de uma emenda que proíbe as "acusações de apostasia e de incitação à violência" depois que um parlamentar de esquerda foi atacado por um deputado islamita. "Os constituintes tunisianos da ala islamita ou da chamada ala democrata votaram contra a liberdade de expressão", logo lamentou Amira Yahyaoui, presidente da associação pela transparência da vida pública Al-Bawsala, fazendo-se de porta-voz de várias ONGs.
Ainda que com dificuldades, e salvo haja algum incidente maior, Assembleia Nacional Constituinte tunisiana vai avançando. Foi por um triz, se pensarmos na suspensão total que houve em seus trabalhos após o assassinato, no dia 25 de julho de 2013, de Mohamed Brahmi, um deputado da oposição morto a tiros, da mesma forma que Chokri Belaid, uma figura da esquerda, no dia 6 de fevereiro. Esse segundo assassinato político havia mergulhado o país em uma profunda crise, ameaçando a frágil transição tunisiana.
Situação inédita
Após várias semanas de negociações conduzidas por atores da vida civil, como a UGTT, a poderosa central sindical tunisiana que se tornou a principal mediadora da crise, um acordo por fim foi fechado: a conclusão da Constituição e a organização de novas eleições contra a promessa arrancada do Ennahda de ceder a direção do governo a uma equipe de tecnocratas gestores que deveriam apaziguar o clima geral. É a nova etapa prevista: dentro de alguns dias – quinta-feira (9) no mais tardar, pediu o secretário-geral da UGTT, Houcine Abassi - , o primeiro-ministro Ali Larayedh deverá ceder seu lugar a Mehdi Jomaa, atual ministro da Indústria, mas sem rótulo partidário conhecido. Assim, uma página seria virada: a das eleições de outubro de 2011 que levaram ao poder, pela primeira vez, islamitas ainda na clandestinidade até um ano antes…
Essa situação inédita, embora marcada por episódios tensos, se deve à preocupação constante, da parte de todos os atores tunisianos, de jamais chegar ao ponto de ruptura vivido por outros países da "primavera árabe", que resvalaram para o caos e a repressão.
A tragédia síria e o desenrolar da situação no Egito, onde a Irmandade Muçulmana, cada vez mais impopular, foi brutalmente expulsa do governo, pesaram bastante. Esse revés obrigou os islamitas tunisianos a fazerem mais concessões, enquanto do lado da oposição os mais radicais tiveram de decidir negociar, por falta de forças.
Assim, os confrontos de rua permaneceram contidos devido à pouca mobilização de uma população mais preocupada com as dificuldades crescentes da vida cotidiana do que com disputas políticas ou ideológicas. Na segunda-feira, indiferentes aos debates dos deputados sobre a Constituição, jovens desempregados atacaram um posto policial na província de Gafsa. Foi nessa região mineradora e rebelde que as sementes do levante de 2011 brotaram.
Reportagem de Isabelle Mandraude para o Le Monde, reproduzida no UOL.
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