A coluna da quinta-feira passada tentou expor os motivos da esquerda ao visar construir uma sociedade mais igualitária. Hoje, a sequência seria discutir avanços e limites da política econômica nessa busca. Faço, porém, um certo desvio de rota em razão da ótima entrevista do ex-presidente do BC Chico Lopes ao jornal "Valor" do mesmo dia.
Lopes é um liberal, acredita que o governo federal intervém demais na economia --como ao distribuir renda via aumento do salário mínimo, o que elevaria a inflação-- e defende os avanços institucionais do governo FHC para o qual trabalhou, como a criação do Copom e da Lei de Responsabilidade Fiscal.
Contudo, ao contrário da maioria de economistas e jornalistas que têm criticado o governo, Lopes buscou entender a racionalidade da política econômica do PT.
A visão com a qual dialoga pode ser conhecida no texto do ex-secretário-executivo da Fazenda Nelson Barbosa e do economista José Antonio Pereira de Souza "A inflexão do governo Lula: política econômica, crescimento e distribuição de renda".
Lopes não trata a economia como uma receita de coisas óbvias que o governo insiste em ignorar. A situação fiscal anda ruim? "Em comparação com outros países, a situação fiscal brasileira é muito favorável."
A dívida líquida não indica mais nada? "Do ponto de vista de formulação da política econômica, o que interessa é a dívida líquida". Poderia ter um conceito híbrido, que usasse a dívida bruta, descontando as reservas cambiais, porém "a posição fiscal do Brasil é confortável". "A dívida bruta de outros países é de 90%, 100% do PIB". A do Brasil é 60%.
O governo forçou a barra ao reduzir os juros? Não. "Acho que vamos voltar a operar com juro real de 5% a 6%, mas isso se justifica transitoriamente como estratégia de controle da inflação. Mas, como posição permanente, transforma o Brasil em uma economia de rentistas."
Os fundamentos reais são desastrosos? "É preciso investir em educação, infraestrutura e, na verdade, as coisas estão sendo propostas pelo governo."
Uma conclusão disso poderia ser dada pelo trecho a seguir: "Converso muito com empresários e vejo que as pessoas estão preocupadas com a política econômica, com a percepção de descontrole, de excesso de intervenção. Mas aí se pergunta se eles vão parar de investir e dizem que não, por razões estratégicas, porque estão em plena capacidade".
Lopes mostra que o governo se pauta por um entendimento distinto do propugnado pelo liberalismo, que crê que o governo deve "deixar o mercado fazer sua mágica". Mesmo que 1% da população abocanhe 50% da renda, a liberdade econômica trará o crescimento que fará a situação dos mais pobres melhorar. "Essa é a visão do mercado do que é política correta."
No entanto, tal entendimento não é indiscutível nem desinteressado (o "mercado" é feito de gente entre os 1% mais ricos). O PT, na tradição de um partido socialista ou social-democrata, visa a distribuir renda para fazer justiça social e crescer.
O problema --e a crítica é eloquente ao ser feita por alguém que tenta entender as razões do governo-- é não articular claramente sua visão.
Difícil negá-lo quando no dia anterior o secretário do Tesouro, Arno Augustin, deu entrevista ao mesmo "Valor" para falar de contabilidade pública, assunto técnico e árido, que costuma passar longe dos jornais.
Augustin apontou exageros na crítica do que se chama de "contabilidade criativa", porém a batalha da percepção está sendo perdida (com custos para as taxas de captação financeira do país) porque é preciso mostrar melhor que a concepção da política econômica há muito não é a mesma do governo FHC.
Por exemplo, não é preciso ter uma meta rígida de superavit primário porque a situação fiscal agora é boa. Não se mira uma convergência rápida à meta central de inflação porque isso prejudicaria a continuidade da distribuição de renda.
Até 2010/11, foi possível conciliar tal mudança com um entendimento duro do chamado "tripé da política econômica" porque a alta de preços das exportações brasileiras valorizou o câmbio num contexto em que foi possível reduzir a inflação, crescer e distribuir renda. Entretanto, nos últimos anos, começou a se avizinhar um conflito distributivo. A esquerda tem seu lado nisso. O governo, também. Mas precisará fazer opções mais claras na política econômica.
Texto de Marcelo Miterhof, publicado na Folha de São Paulo.
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