Quero propor um experimento de deixar o Hélio Schwartsman radiante: pegue um filhote de lulu da pomerânia, aquele que parece uma raposinha que teve a má sorte de encostar numa cerca elétrica.
Jogue-o num quintal e deixe-o lá, desatendido. De quando em quando, use um porrete para descer o sarrafo no bicho. Não se acanhe, bata com gosto.
Ao mesmo tempo, em outro espaço distinto, você coloca outro filhote de lulu da pomerânia, idealmente que seja da mesma ninhada do primeiro, e o cria sem nunca deitar um dedo nele.
Desconfio que, ao cabo de dois anos, quando os cães estiverem maduros, aquele que apanhou sistematicamente será um tico mais irritadiço do que o outro. Será?
A maioria de nossos jovens de baixa renda, negros e pardos na maioria, já nasce praticamente apanhando da polícia.
Para essa juventude é rotina ser parado na rua para averiguação. Ninguém é louco de andar sem carteira de trabalho. Quem não tem, corre o risco de ser confundido com outro "Marcos Ferreira da Silva" ou outro "Joaquim Souza Costa" que tenham cometido delitos. Se forem, o risco é de passar um bom período na detenção ou, no mínimo, de ter a dignidade aviltada e tomar uma surra. Essa é a realidade palpável -a qualquer hora do dia- para milhares de guris que você e eu cruzamos na rua diariamente.
O mesmo medo que sentimos de tomar um tiro na cara de um assaltante, o jovem da periferia que tenha entre 8 e 28 anos tem da polícia. A cada farda que vê, camarada pensa: "É agora!" Um líder negro me explicou que uma das razões que a molecada agora quer passar tempo no shopping é que lá tem câmera para registrar eventuais excessos cometidos por policiais.
Pergunto: frases como "Vagabundo tem mais é que morrer" ou "A polícia faz bem em matar" não alimentam o sistema de mais um cão raivoso?
Não existe dicotomia entre democracia e "ordem e progresso". Quem imagina isso é o "clube da saudade" que não consegue enxergar o fato de que, na época dos militares, quando alguns imaginavam que reinasse a paz, a perifa cuja existência eles só percebem agora já existia. Só que viviam mais longe, pior e não ousavam abrir o bico.
Pois agora eles sabem de seus direitos. E o dever de quem sempre esteve por cima, se tivesse alguma decência, seria dinamitar barreiras e promover mudanças de mãos dadas. Ou foi para ficar tudo igual que saímos às ruas em junho?
Na quarta, o comandante-geral da PM, general Benedito Roberto Meira me disse que nossa PM "não é violenta". Para ele pode ser. Mas não é o que pensa a população carente nem o que dizem as estatísticas que tanto chocam o mundo.
E os índices de latrocínio, o mais temido dos crimes, só fazem crescer em SP, donde se conclui que o especialista em segurança pública, consultor do governo FHC, antropólogo e professor da UERJ, Luiz Eduardo Soares, está coberto de razão ao colocar como prioridade absoluta a desmilitarização da polícia (desmilitarização, note, não significa desarmamento). "O objetivo do Exército é defender o território. Para cumprir essa função, ele se organiza para mobilizar grandes contingentes com máxima celeridade sob ordens vindas de um só comando. Sua estrutura organizacional é totalmente verticalizada. O exército luta contra o inimigo. Já a polícia é outro tipo de instituição. Seu papel é prestar serviço, fazer ronda, patrulhamento, diagnosticar problemas, mediar conflitos, dialogar e evitar a judialização."
"Confrontos armados são as únicas situações em que alguma semelhança poderia haver com o Exército, mas correspondem a menos de 1% das atividades da polícia." Só de ouvir uma coisa dessas dá vontade fugir para Miami, não dá, clube da saudade?
Texto de Barbara Gancia, na Folha de São Paulo.
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