sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Saudade tem idade e sobrenome

Quero propor um experimen­to de deixar o Hélio Schwartsman radiante: pe­gue um filhote de lulu da pomerânia, aquele que parece uma raposi­nha que teve a má sorte de encostar numa cerca elétrica.
Jogue-o num quintal e deixe-o lá, desatendido. De quando em quan­do, use um porrete para descer o sarrafo no bicho. Não se acanhe, ba­ta com gosto.
Ao mesmo tempo, em outro espa­ço distinto, você coloca outro filho­te de lulu da pomerânia, idealmen­te que seja da mesma ninhada do primeiro, e o cria sem nunca deitar um dedo nele.
Desconfio que, ao cabo de dois anos, quando os cães estiverem maduros, aquele que apanhou sis­tematicamente será um tico mais irritadiço do que o outro. Será?
A maioria de nossos jovens de bai­xa renda, negros e pardos na maio­ria, já nasce praticamente apa­nhando da polícia.
Para essa juventude é rotina ser parado na rua para averiguação. Ninguém é louco de andar sem car­teira de trabalho. Quem não tem, corre o risco de ser confundido com outro "Marcos Ferreira da Silva" ou outro "Joaquim Souza Costa" que tenham cometido delitos. Se fo­rem, o risco é de passar um bom pe­ríodo na detenção ou, no mínimo, de ter a dignidade aviltada e tomar uma surra. Essa é a realidade palpá­vel -a qualquer hora do dia- para milhares de guris que você e eu cru­zamos na rua diariamente.
O mesmo medo que sentimos de tomar um tiro na cara de um assal­tante, o jovem da periferia que te­nha entre 8 e 28 anos tem da polícia. A cada farda que vê, camarada pen­sa: "É agora!" Um líder negro me explicou que uma das razões que a molecada agora quer passar tempo no shopping é que lá tem câmera para registrar eventuais excessos cometidos por policiais.
Pergunto: frases como "Vaga­bundo tem mais é que morrer" ou "A polícia faz bem em matar" não alimentam o sistema de mais um cão raivoso?
Não existe dicotomia entre demo­cracia e "ordem e progresso". Quem imagina isso é o "clube da saudade" que não consegue enxer­gar o fato de que, na época dos mili­tares, quando alguns imaginavam que reinasse a paz, a perifa cuja existência eles só percebem agora já existia. Só que viviam mais longe, pior e não ousavam abrir o bico.
Pois agora eles sabem de seus di­reitos. E o dever de quem sempre esteve por cima, se tivesse alguma decência, seria dinamitar barreiras e promover mudanças de mãos da­das. Ou foi para ficar tudo igual que saímos às ruas em junho?
Na quarta, o comandante-geral da PM, general Benedito Roberto Meira me disse que nossa PM "não é violenta". Para ele pode ser. Mas não é o que pensa a população ca­rente nem o que dizem as estatísti­cas que tanto chocam o mundo.
E os índices de latrocínio, o mais temido dos crimes, só fazem cres­cer em SP, donde se conclui que o especialista em segurança pública, consultor do governo FHC, antro­pólogo e professor da UERJ, Luiz Eduardo Soares, está coberto de ra­zão ao colocar como prioridade ab­soluta a desmilitarização da polícia (desmilitarização, note, não signi­fica desarmamento). "O objetivo do Exército é defender o território. Para cumprir essa função, ele se or­ganiza para mobilizar grandes con­tingentes com máxima celeridade sob ordens vindas de um só coman­do. Sua estrutura organizacional é totalmente verticalizada. O exérci­to luta contra o inimigo. Já a polícia é outro tipo de instituição. Seu pa­pel é prestar serviço, fazer ronda, patrulhamento, diagnosticar pro­blemas, mediar conflitos, dialogar e evitar a judialização."
"Confrontos armados são as únicas situações em que alguma seme­lhança poderia haver com o Exérci­to, mas correspondem a menos de 1% das atividades da polícia." Só de ouvir uma coisa dessas dá vontade fugir para Miami, não dá, clube da saudade?


Texto de Barbara Gancia, na Folha de São Paulo.

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