segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Alma reptiliana em 2014

Por que, depois de tantas provas de que muitas religiões são uma farsa e alguns de seus ministros são uns picaretas, elas ainda dominam a vida da maioria dos seres humanos? Uma resposta possível está na Pré-História e em nossa "alma reptiliana".
Sou daquele tipo de pessoa que não acredita que mudamos muito nos últimos tempos; para dizer a verdade, acho que, quando pensamos na humanidade, a Pré-História deveria ser mais levada a sério do que surtos como a Revolução Francesa ou coisas passageiras como eleições democráticas.
Ou melhor, a Revolução Francesa deveria ser lida como mais um surto da violência natural que caracteriza toda manifestação de multidões desde o Paleolítico. Gostamos de matar e pronto. E a ideia de "um mundo melhor" é tão metafisica quanto os milenarismos medievais ou o monte Olimpo de Zeus.
Voltemos às religiões. Fenômeno mais essencial do que a política (aliás, só quando vira religião a política reúne multidões, como os fanáticos que creem na política como salvação), e, mais determinante, a religião deita raízes, como tudo mais de humano, na força que de fato nos forma, o desejo, que em nós é atávico como nosso cérebro réptil. E o réptil em nós goza no desejo.
Em nós, o desejo é metafísico, isto é, desejamos um mundo imaterial e eterno, no qual a força dos deuses é nossa, e nela não somos os miseráveis que somos. E para ter esse mundo nos fazemos ainda mais miseráveis, porque nosso pensamento e nossas ideias servem a esse desejo, e não o contrário. Por isso, seguimos picaretas de todos os tipos, que dizem representar os deuses, os santos, os espíritos que controlariam nossos destinos, fracassos e sucessos. No fundo, querem dinheiro, sempre dinheiro.
Não somos seres de razão, somos seres de desejo. É na Pré-História que encontramos a melhor compreensão de nossa "natureza", e não em teorias escritas em gabinetes sofisticados. Em cada um de nós vive um Australopithecus pronto a romper seu exílio em nossas maneiras afetadas de civilizados.
A religião, em grande parte, "organiza os delírios" de nossa mente animal e irracional. Em nós, a razão é superficial como espuma. Mas, diga-se, uma espuma que deve ser cultivada a todo custo.
Para além da chamada "escolha racional" (teoria muito comum hoje em estudos das religiões), teoria esta baseada no utilitarismo inglês que afirma que os seres humanos escolhem racionalmente buscando a redução do mal-estar e a otimização do bem-estar (por isso a religião, na sua hegemonia, seria um modo de escolha que diminui nosso mal-estar), a "inconsciência religiosa" se mantém, em grande parte, graças à estrutura mental pré-histórica.
É fácil imaginar nossos ancestrais apavorados sob o domínio de figuras xamânicas que cuspiam fogo enquanto afirmavam que pragas, doenças e guerras assolariam a vida do bando — o óbvio e ululante, claro. Ou, no caso de desejarem combater essas maldições, eles deveriam matar bichos, matar pessoas, comer comidas sagradas, entoar sons repetitivos, dançar ritmos extáticos, fazer sexo com o sacerdote. Enfim, há um risco de reptilização da fé.
Quando passo diante de um desses templos nos quais as pessoas erguem as mãos e gritam pelo Espírito Santo ou qualquer outra entidade suposta, ouço nossa ancestralidade berrando em plena luz do dia. Pensar que há algo de diferente entre o pré-histórico e nós nisso é confundir o cenário com a dramaturgia que na realidade define os personagens e sua ação.
Claro, hoje, afetados de todos os tipos se dizem contra sacrifícios animais e contra guerras, mas, em dois minutos, pulariam na jugular de quem fosse contra suas pautas de santidade. A verdade do homem não está no que ele diz, mas no que ele faz em nome do que ele diz.
As religiões evoluíram, como tudo mais em nós. Produziram grandes e belos sistemas teológicos e morais. Não nego. Mas o número de pessoas que se submetem a reptilização da fé é enorme, pouco importa o quão inteligentes sejam em outras áreas, ainda creem, em 2014, na capacidade de interpretação desses picaretas do mundo dos espíritos.


Texto de Luiz Felipe Pondé, na Folha de São Paulo

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