segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Grupo que roubou documentos do FBI sai das sombras

É bem mais fácil cometer o crime perfeito quando ninguém está vendo.
Então, numa noite há quase 43 anos, enquanto Muhammad Ali e Joe Frazier se espancavam ao longo de 15 assaltos numa disputa de título transmitida pela televisão para milhões de pessoas ao redor do mundo, assaltantes usaram uma gazua e um pé de cabra para invadir um escritório do FBI num subúrbio da Filadélfia, no estado de Pensilvânia, saindo de lá com quase todos os documentos que havia dentro.
Eles nunca foram pegos e os documentos roubados que enviaram anonimamente para repórteres de jornais foram a primeira gota do que viria a se tornar uma enxurrada de revelações sobre uma extensa espionagem e operações sujas do FBI contra grupos dissidentes.
O roubo em Media, Pensilvânia, em 8 de março de 1971, é um eco histórico dos dias de hoje, quando as revelações do ex-funcionário da Agência Nacional de Segurança dos EUA Edward J. Snowden lançaram outra luz pouco lisonjeira sobre a espionagem do governo e abriram o debate nacional sobre os limites adequados da vigilância do governo.
Os assaltantes tinham até agora mantido um voto de silêncio sobre seus papeis na operação. Eles estavam contentes em saber que suas ações haviam dado o primeiro golpe significativo numa instituição que tinha acumulado enorme poder e prestígio durante o longo mandato de J. Edgar Hoover em sua diretoria.
"Quando você fala com pessoas de fora do movimento sobre o que o FBI estava fazendo, ninguém queria acreditar", disse um dos ladrões, Keith Forsyth, que finalmente tornou público seu envolvimento. "Havia apenas uma forma de convencer as pessoas de que era verdade, e era conseguindo as provas escritas por eles."
Forsyth, hoje com 63 anos, e outros membros do grupo não podem mais ser processados pelo que aconteceu naquela noite, e concordaram em ser entrevistados antes do lançamento, esta semana, de um livro escrito por um dos primeiros jornalistas a receber os documentos roubados. A autora, Betty Medsger, ex-repórter do Washington Post, passou anos varrendo o volumoso dossiê do FBI sobre o episódio e convenceu cinco dos oito homens e mulheres que participaram do arrombamento a quebrarem o silêncio.
Ao contrário de Snowden, que baixou centenas de milhares de arquivos digitais da NSA para discos rígidos de computador, os assaltantes de Media fizeram seu trabalho à moda do século 20: eles observaram o escritório do FBI por meses seguidos, usaram luvas ao colocar os documentos em maletas, e colocaram as malas nos carros de fuga. Quando a operação terminou, eles se dispersaram.
Alguns continuaram comprometidos com causas anti-guerra, enquanto outros, como John e Bonnie Raines, decidiram que o arriscado roubo seria seu último ato de protesto contra a Guerra do Vietnã e outras ações do governo antes de darem continuidade a suas vidas.
"Nós não precisávamos de atenção, porque tínhamos feito o que era necessário", disse Raines, 80, que, junto com sua esposa, havia arranjado para que outros membros da família criassem seus três filhos caso o casal fosse preso. "Os anos 60 tinham acabado. Não precisávamos nos prender a uma coisa que fizemos lá atrás."
Um plano meticuloso
O roubo foi a ideia de William C. Davidon, professor de física do Haverford College e uma figura constante nos protestos contra a guerra na Filadélfia, uma cidade que no início dos anos 70 havia se tornado um centro fervoroso do movimento pacifista. Davidon estava frustrado com o fato de que os anos de manifestações organizadas pareciam ter tido pouco efeito.
No verão de 1970, meses depois que o presidente Richard Nixon anunciou a invasão do Camboja pelos Estados Unidos, Davidon começou a montar uma equipe a partir de um grupo de ativistas em cujo compromisso e discrição ele havia passado a confiar.
O grupo – originalmente composto de nove pessoas, antes da desistência de um deles – concluiu que seria muito arriscado tentar invadir o escritório do FBI no centro da Filadélfia, onde a segurança era reforçada. Eles logo concordaram quando ao escritório satélite de Media, num prédio de apartamentos em frente ao tribunal do condado.
O roubo aconteceu em grande parte sem problemas, exceto quando Forsyth, incumbido de abrir a porta, teve que arrombar uma entrada diferente da planejada quando descobriu que o FBI havia instalado uma fechadura que ele não conseguia abrir na porta principal. Ele usou um pé de cabra para abrir um trinco acima da maçaneta.
Depois de guardar os documentos em maletas, os assaltantes empilharam-nas nos carros de fuga e se encontraram numa casa de fazenda para avaliar o que haviam roubado. Para seu alívio, logo descobriram que a maior parte era de provas concretas de espionagem do FBI contra os grupos políticos. Identificando-se como Comissão dos Cidadãos para Investigar o FBI, os assaltantes enviaram documentos selecionados a vários jornalistas.
Duas semanas depois do roubo, Medsger escreveu o primeiro artigo com base nos arquivos, depois que o governo Nixon tentou sem sucesso fazer com que o Post devolvesse os documentos.
O documento que teria o maior efeito para conter as atividades de espionagem doméstica do FBI era uma lista de circulação interna, datada de 1968, que tinha uma palavra misteriosa: Cointelpro.
Nem os ladrões de Media nem os repórteres que receberam os documentos compreendiam o significado o termo, e foi somente muitos anos mais tarde, quando o repórter da NBC News Carl Stern obteve mais arquivos do FBI usando a Lei de Liberdade de Informação, que os contornos do Cointelpro – abreviação para o Programa de Contrainteligência – foram revelados.
Desde 1956, o FBI havia empreendido uma ampla campanha para espionar líderes dos direitos civis, organizadores políticos e possíveis comunistas, e tentou semear a desconfiança entre os grupos de protesto. Entre a funesta série de revelações havia uma carta de chantagem que agentes do FBI haviam enviado anonimamente para o reverendo Martin Luther King Jr., ameaçando expor seus casos extraconjugais se ele não se suicidasse.
"Não era apenas espionar os norte-americanos", disse Loch K. Johnson, professor de assuntos públicos e internacionais na Universidade da Geórgia que foi assessor do senador Frank Church, democrata de Idaho, cujo comitê lançou uma investigação sobre os abusos de inteligência dos EUA. "A intenção do Cointelpro era destruir vidas e arruinar reputações."
A investigação de Church em meados da década de 1970 revelou ainda mais sobre a extensão dos abusos de décadas do FBI, e levou a uma maior supervisão do Congresso sobre o FBI e outras agências de inteligência dos EUA.
O relatório final da Comissão de Church sobre a vigilância doméstica foi contundente. "Muitas pessoas foram espionados por muitas agências governamentais e muita informação foi recolhida", dizia.
Davidon morreu no ano passado devido a complicações do mal de Parkinson. Ele havia planejado falar publicamente sobre o seu papel no roubo, mas três dos assaltantes optaram por permanecer anônimos.
Entre os que vieram a público – Forsyth, os Raines e um homem chamado Bob Williamson – há uma certa desconfiança sobre como sua decisão será vista.
A passagem dos anos atenuou algumas das arestas das opiniões políticas antes radicais de John e Bonnie Raines. Mas eles disseram sentir uma afinidade para com Snowden e veem as revelações dele sobre a espionagem da NSA como um apoio para suas próprias revelações há tempos atrás.
Eles sabem que serão criticados por alguns por terem participado de algo que, se tivesse resultado em prisão e condenação, poderia tê-los separado de seus filhos durante anos. Mas eles insistem que nunca teriam entrado para a equipe de assaltantes se não estivessem convencidos de que sairiam impunes.
"Parece que somos pessoas terrivelmente irresponsáveis", disse John Raines. "Mas não havia absolutamente ninguém em Washington – senadores, congressistas, até mesmo o presidente – que ousasse fazer J. Edgard Hoover prestar contas."
"Ficou bastante óbvio para nós que se não fizéssemos aquilo, ninguém mais faria", disse ele.

Reportagem de Mark Mazzetti, para o The New York Times, reproduzida no UOL. Tradução: Eloise de Vylder

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