terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Il chiacchiericcio e il rumore

Eu poderia assistir ao filme “A grande beleza” umas três vezes seguidas – não fosse pelo fato de ter escolhido vê-lo na última sessão do dia. Falo de uma sensação rara, que não vivia há tempos no cinema – coisa que nem um espetáculo deslumbrante como “Gravidade”, de Alfonso Cuarón, foi capaz de provocar (talvez se tivesse uma boa história, mas eu divago, e ainda é cedo – no texto e no ano…). A sensação de não querer sair da sala, de entregar-se novamente ao fio de uma história (ou no caso, aos caminhos aleatórios de um personagem fascinante), de conferir novamente algumas cenas – talvez todas. Enfim, de não sair do barco que lentamente navega pelo Tibre, atravessando Roma nas primeiras horas da manhã, numa tomada que é um convite irresistível – entre tantos que o filme oferece – a se perder como se estivéssemos vivendo “La dolce vita”.
Desafio qualquer pessoa que vá ver “A grande beleza” a não lembrar de Fellini – não como uma referência fácil, mas inevitável. Afinal, estamos desfilando pelas mesmas ruas, pelas mesmas festas, pelas mesmas caricaturas que o grande mestre do cinema italiano mostrou ao mundo. Meio século já se passou desde que “Dolce vita” foi lançado, é verdade. Mas será que a Roma de Fellini e a de Paolo Sorrentino (que dirige “A grande beleza”) são tão diferentes assim? Ou, ainda, será que o aborrecimento e o tédio da sociedade mudou tanto em apenas 50 anos? São coisas como essas que nos fazem pensar – e, novamente, aqui está outro feito raro que o filme de Sorrentino conseguiu alcançar.
Saí ao mesmo tempo inquieto e deslumbrado do cinema – e comecei a fazer um estranho e inesperado paralelo entre “A grande beleza” e um outro filme que me escapou em 2013, mas que, uma vez que apareceu em boa parte das listas de “melhores do ano” que eu respeito, acabei assistindo no último domingo: “Spring breakers” (que no Brasil, talvez para atrair um público adolescente – de todas as idades – que ainda não descobriu a pornografia na internet, recebeu o subtítulo de “Garotas perigosas”). Dirigido pelo sempre alternativo Harmony Korine, “Spring breakers” foi lançado há quase um ano nos Estados Unidos – justamente para coincidir com o “sprink break”, que é em março/abril e funciona como uma espécie de “semana de recesso” daquelas que os estudantes têm por aqui, só que com um pouco mais de excessos (e sem a vigilância dos pais…). Passou rapidamente por nossas telas no segundo semestre do ano passado – e logo foi parar em DVD e nos serviços de filme para baixar direto na sua TV (foi assim que eu o conferi).
Quis o acaso (sempre ele) que eu visse “Spring breakers” apenas um dia antes de “A grande arte” – e, embora os dois filmes não pudessem ser mais diferentes no estilo (a começar pelas cores, fosforescentes nas lentes de Korine, douradas nas de Sorrentino), consegui achar curiosas conexões entre os dois trabalhos. Não se trata de julgar aqui qual é o filme “superior” – os cinéfilos mais esnobes certamente vão optar pela produção italiana, enquanto os mais “independentes”, que costumam sair no meio de sessões que exijam mais de uma sinapse ao mesmo tempo, certamente darão seu voto ao filme americano. O que é interessante é ver como a preocupação com a estupidez de uma vida burguesa (e olha que uso esse adjetivo sabendo que ele está totalmente fora de moda) não está resolvida no nosso tempo. Pelo contrário, só tende a piorar.
Se Sorrentino nos oferece Roma, Korine vem com um lugar não muito definido na Flórida – o estado americano do eterno verão. Para as madames cheias de botox italianas, “Breakers” vem com jovens de peitos estufados e bundas que não resistem ao “quadradinho de oito” quando mostradas em câmera lenta. A cocaína – quem diria? – é uma constante nas festas dos dois lados do Atlântico. E se a burguesia romana se apresenta de maneira mais óbvia, desfilando Armanis, Versaces, Gabbanas, Guccis e Cavallis (e jóias que chegam a envergar a coluna das senhoras caquéticas que as usam), os símbolos de status na Flórida só mudam de formato – armas, carros -, mas são ostentados da mesma maneira, e com o mesmo propósito: jogar na cara de quem passa a ideia de que “eu tenho e você não” (se isso fica um pouco mais difícil de perceber em “Spring breakers”, dê uma conferida novamente no discurso que James Franco, na pele do macilento Alien, faz com duas metralhadoras nas mãos, de pé, em cima de sua cama coberta de notas de 100 dólares).
Jep Gambardella – o suave personagem interpretado (aparentemente sem dificuldade alguma) por Toni Servillo – tem, talvez, inquietações mais profundas do que os personagens de “Spring breakers”, além de dizer coisas ligeiramente mais interessantes: o discurso em que ele desbanca sua amiga de 53 anos que se acha uma mártir política e familiar (uma vitoriosa na “missão de ser mãe e mulher”, como ela mesma coloca) é uma obra-prima do desconforto social: nunca palavras tão ácidas foram colocadas com tanta elegância, a ponto de me lembrar de Patrick Melrose, o genial personagem dos livros de Edward St. Aubyn (lá vou eu divagando novamente…). Mas não se esqueça de que as meninas de “Spring breakers” ligam constantemente para suas mães e avós com um discurso que, ainda que de longe, poderia ser adaptado das palavras de Jep. Se este está preocupado em encontrar “a grande beleza” (ele escreveu um único livro de sucesso décadas atrás, e desde então não consegue sequer começar um outro por conta dessa busca), as meninas também querem um sentido maior para suas vidas – “eu realmente quero acertar dessa vez, mãe”, é uma frase típica.
O problema é que, como diz Jep quase no final de “A grande beleza”, tudo está sedimentado em “tagarelice e ruído” – ou, como no original (de onde pequei emprestado o título para o post de hoje): “È tutto sedimentato sotto il chiacchiericcio e il rumore “. Esse blá blá blá… Essa cacofonia besta que nos rodeia e nos soterra – e aí já não estou falando mais de Roma, ou da Flórida, mas desse seu (nosso) dia-a-dia miúdo e sem significado, cuja falta de graça só não percebemos porque o volume de tudo em volta está alto demais – e os “likes” e avisos de mensagem não param de chegar. É uma vida sem graça sim, que mais e mais só faz sentido se alguém curte o que você curtiu – ou ainda, se alguém curte o que você postou porque achava que aquilo ia fazer com que muitas pessoas curtissem você. (Estou lendo o novo livro de Dave Eggers, “The circle”, que toca exatamente nesta ferida, mas para não divagar pela terceira vez, vamos deixar essa conexão para uma outra hora). Nem “A grande beleza” nem “Spring breakers” fazem referência alguma às redes sociais – mas nem precisavam. Elas, de fato, pouco vieram acrescentar à nossa vocação de nos perdermos numa vida enfadonha.
Jed tenta fugir dela, mas é como se a cada noite, a cada festa, desistisse um pouco mais deste propósito. Seu grande momento no filme é quando conhece a filha de um velho amigo seu da noite. Ramona (Sabrina Ferilli) é uma “stripper” quarentona, com uma tatuagem de João Paulo II no braço, cuja dependência de seus cílios postiços só não é maior do que a das aplicações de botox. Improvavelmente, ela forma com Jep um belo par – e é para escapar de mais uma festa chata (onde uma criança de 10 anos faz uma “performance” pintando um quadro às lágrimas) que o casal nos leva a uma das mais belas sequências de “A grande beleza”, quando, com a ajuda de um “mestre das chaves”, eles visitam espetaculares coleções de arte iluminadas à luz de velas (ao som de Ravel, mas eu divago, acho que já pela quarta vez…). Mas até Ramona passa – e Jep segue sem a certeza de que está, aos 65 anos, perto de conhecer “a grande beleza”.
“Está vendo esta gente? Esta fauna? Esta é a minha vida. E não é nada”. Assim suspira Jep a certa altura, exatamente no momento em que a mulher ao meu lado no cinema recebia uma mensagem de texto. A tela de seu smartphone intrometidamente tentando quebrar a magia do que a grande tela nos oferecia. Aborrecida talvez com o que via, ela então respondeu sua mensagem (sem desligar o som de seu celular) e inconsequentemente tentou voltar sua atenção para o filme – mas já era tarde. Ela nem se deu conta, mas era a própria fauna a que Jep se referia. E eu era também. Somos todos.
Há um perverso prazer em ver atrizes como Selena Gomez – uma das carreiras mais perfeitamente fabricadas por Hollywood/Disney – cheirando cocaína e arriscando uma caminhada pelo lado selvagem da vida (como diria o saudoso Lou Reed) no intenso “Spring breakers”. Mas será que somos muito diferentes delas – ou, já que estamos sendo honestos, será que somos muito diferentes dos convivas que frequentam o nobre terraço de Jep (que tem uma cinematográfica vista para o Coliseu)? Fazemos todos parte da mesma festa, dançando a mesma música – e a única salvação talvez, já que não moramos em Roma (uma cidade que, sob pena de ser apedrejado aqui, confesso que não é uma das minhas favoritas no mundo), é olharmos tudo isso com certa candura.
Numa outra noite no terraço de Jep, uma convidada explodindo de êxtase declara: “Eu adoro os trenzinhos!” – referindo-se ao momento catártico de uma noite em que todo mundo que na pista de dança se entrega àquela coreografia desencontrada (e divertida) formando uma fila desconjuntada e feliz. Jep, que tudo observa, completa: “São belos os trenzinhos que fazemos nas festas, não é verdade? São os mais belos do mundo, porque não vão a lugar algum”…
“A grande beleza” é também um grande trem que não tem bem seu destino definido. De uma revoada de flamingos à girafa que desaparece nas termas de Caracalla, são várias as estações que Sorrentino nos oferece como escala, com sua câmera que parece saber equilibrar exatamente movimento e estática. Mas os passageiros mais sensíveis logo descobrem que a tal beleza não está no ponto de chegada, mas no próprio passeio. E é por isso que eu vou voltar e voltar a este filme. Não poderia ter começado meu ano no cinema de uma maneira melhor…
O refrão nosso de cada dia: “Sing to the moon”, Laura Mvula - já que é para começar bem o ano, aqui está o que talvez seja uma descoberta tardia. Mas é que só esbarrei em Mvula – que foi uma das indicadas para o prestigioso prêmio Mercury de 2013 – agora, na minha passagem recente por Londres. Seu disco de estreia, cuja faixa-título indico aqui hoje, é extremamente sofisticado nos arranjos, o que a coloca num patamar que ninguém está neste momento. Talvez Lorde – mas esta eu tenho certeza que você já ouviu bastante (eu mesmo já perdi a conta de quantas vezes já escutei “Royals“. Mas o ano está começando… É tempo de descobrir coisas novas, concorda?

Nenhum comentário:

Postar um comentário