sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Muros para impedir imigração nas fronteiras agora ferem e matam


Novos rolos de arame farpado estão no alto da cerca ao redor de Melilla, um dos dois territórios espanhóis na costa mediterrânea do norte da África. Juntamente com Ceuta, os enclaves compartilham a única fronteira terrestre da União Europeia com a África e são alvo de imigrantes desesperados para chegar à Europa. A Espanha há muito mantém um sistema de cerca de alta tecnologia ao redor dos enclaves, em uma tentativa de afastar os imigrantes, mas tinha removido o arame farpado no alto da cerca de Melilla em 2007, após causar sérios ferimentos naqueles que tentavam pulá-la.

Em novembro do ano passado, entretanto, em resposta aos crescentes ataques de imigrantes à cerca, as autoridades espanholas devolveram o arame farpado. A decisão enfureceu ativistas de direitos humanos e líderes religiosos por toda a Europa. Em uma carta ao ministro do Interior espanhol, o bispo Santiago Agrelo Martinez escreveu: "arame farpado com lâminas nas cercas em Ceuta e Melilla é um ataque à integridade física dos imigrantes: as lâminas cortam, ferem, mutilam...". O bispo apreciou a responsabilidade do governo espanhol de proteger as fronteiras do país, mas expôs o fato de que "lâminas causam apenas dor e morte".

O reforço da cerca ao redor de Melilla é apenas um exemplo do "boom" de construção de muros de fronteira. Segundo Reece Jones, um geógrafo da Universidade do Havaí, quase 30 novas barreiras de fronteira foram erguidas em todo o mundo desde 1998. Há novas cercas na fronteira dos Estados Unidos com o México e ao longo da fronteira da Grécia com a Turquia. A Índia ergueu barreiras em suas fronteiras tanto com o Paquistão quanto com Bangladesh. Israel construiu um muro ao redor da Palestina e completou recentemente uma cerca ao longo de sua fronteira com o Egito.

Por meio da tecnologia, barreiras ao comércio, viagem e comunicação continuam caindo, mas nosso mundo nunca esteve tão fisicamente dividido por geometrias de tijolos, arame farpado e aço. As ramificações políticas e econômicas dos muros são discutidas com frequência e bem entendidas. Assim como o trauma psicológico sofrido por aqueles que vivem à sombra dos muros. Em 1973, um psiquiatra alemão-oriental até mesmo cunhou um termo para a desordem: Mauerkrankheit, ou Doença do Muro.

Mas as objeções do bispo Santiago ao arame farpado recolocado em Melilla revelam algo ainda mais horrível: em uma tentativa de controlar nossas fronteiras, nós projetamos sistemas que ferem fisicamente aqueles que as desafiam. Os muros agem na carne.

Em janeiro de 2011, a cerca ao longo da fronteira da Índia e Bangladesh matou Felani Khatun, 15. O pai de Felani, Nurul Islam, arranjou o casamento dela com seu primo bengalês. Na manhã do casamento, Nurul pagou a dois contrabandistas de gado para que ajudassem ele e Felani a escalarem a cerca para Bangladesh, para que pudessem ir à aldeia onde o noivo estava esperando. Felani subiu a cerca com uma escada de bambu fornecida pelos contrabandistas, mas quando sua saia azul ficou presa no arame farpado, ela entrou em pânico e começou a gritar. O barulho alertou os soldados de fronteira indianos, que começaram a disparar seus fuzis na direção da cerca.

Uma bala perfurou o peito de Felani e ela ficou pendurada, mortalmente ferida, no arame farpado. Ela implorou por água por meia hora antes de finalmente sangrar até a morte. Felani ficou pendurada de cabeça para baixo, um símbolo fúnebre preso no arame, até o sol matinal dispersar a neblina e os soldados de fronteira a retirarem. Eles amarraram as mãos e pés dela a uma vara de bambu e a transportaram como um animal abatido.

O arame farpado também promove uma caligrafia cruel ao longo da fronteira entre os Estados Unidos e o México, mas aqueles que tentam atravessá-la têm muito mais a temer do que apenas a violência do arame farpado. Os atendentes do Centro Médico da Universidade do Arizona tratam cerca de 40 imigrantes por ano por ossos fraturados e ferimentos na coluna sofridos por quedas dos muros de fronteira. Também há ferimentos de bala. Segundo uma investigação de 2013 pelo jornal "The Arizona Republic", os agentes de patrulha da fronteira americana já mataram 42 pessoas desde 2005. Algumas, como o adolescente José Antonio Elena Rodríguez, foram mortas no lado sul da fronteira por agentes americanos disparando pelo muro na direção do México.

Imigrantes do sexo feminino correm o risco de violência mais íntima. Os ativistas de fronteira falam sobre as "árvores de estupro" na áreas de fronteira do Arizona e Califórnia, onde os contrabandistas de pessoas, muitos ligados aos cartéis do narcotráfico mexicanos, fazem uma pausa em sua jornada para estuprar as mulheres que transportam. Quando terminam, os estupradores penduram os sutiãs e calcinhas de suas vítimas nos galhos como uma recordação mórbida de suas conquistas.

Aqueles que são autorizados a passar pelos muros acabam tendo que oferecer sua carne de um jeito ou de outro. Os trabalhadores palestinos pressionam seus corpos pelos corredores de aço e catracas toda manhã para chegarem aos seus empregos em Israel. Em outras partes da Cisjordânia, os agricultores levantam suas camisas diante dos jovens soldados israelenses antes de receberem permissão para trabalhar em seus próprios campos – suas barrigas expostas como prova de que não estão carregando bombas. Mesmo quando os muros não causam dor física, eles exigem ao menos alguma humilhação.

Em 1876, um vendedor de arame farpado, John Gates, prendeu algumas poucas cabeças de touro ferozes dentro de um curral de arame farpado na praça central de San Antonio. Reviel Netz escreve sobre a cena em seu livro "Barbed Wire: An Ecology of Modernity". Gates provocou deliberadamente os touros, que então investiram contra a cerca, apenas para serem repelidos pelas farpas que feriam suas carnes. "Os ferimentos exacerbavam a fúria deles", escreve Netz. Os touros continuaram se lançando contra o arame farpado até que a agonia deles levou a uma retirada instintiva e resignação. Finalmente, eles pararam de tentar atravessar a cerca.

O espetáculo sangrento provou que por meio da aplicação de dor, até mesmo a fera mais feroz pode aprender a respeitar uma fronteira. "Nossas peles", escreve Netz, "logo abaixo da superfície, contam com nervos especiais ativados por pressão acima de limiares muito baixos. É possível usar esses nervos contra nós. Cortando a fronteira de nossas peles, você pode proteger as fronteiras de sua propriedade, de sua prisão, de sua fronteira".

Nossos muros também fazem isso. Eles exploram a baixa tolerância de nossos corpos à dor. Sob os ideais elevados de segurança e soberania se encontra a triste verdade de que projetamos os muros para ferir as pessoas. Nós optamos por controlar o movimento por uma geografia sensível infligindo agonia à carne. Nós precisamos confrontar a desumanidade de como escolhemos defender nossas fronteiras e, como o bispo Santiago, ver a barbárie no arame farpado que desenrolamos.



Texto de Marcello Di Cintio, para o The New York Times, reproduzida no UOL. Tradução: George El Khouri Andolfato

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