terça-feira, 15 de setembro de 2015

Um brasileiro descrente

MINHA HISTÓRIA - CAIO FERRAZ, 47

Um brasileiro descrente

Sociólogo carioca que teve o quinto parente assassinado em 20 anos critica impunidade em relação à violência no país
RESUMO O sociólogo Caio Ferraz, 47, sentiu novamente a dor de perder um parente quando o corpo de seu sobrinho Victor Hugo, 23, foi encontrado na última terça (8) na Baixada Fluminense. O jovem foi o quinto familiar assassinado desde 1986 –dois irmãos e dois sobrinhos já haviam sido mortos. Uma das principais vozes da chacina de Vigário Geral (1993), onde cresceu, Ferraz tenta combater a violência desde então, enfrentando ameaças que o levaram a morar nos EUA por 18 anos.
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Você passa sua vida lutando em prol dos excluídos, militando ao lado dos justos em defesa da democracia e dos direitos humanos e, de repente, recebe a notícia de que um parente seu está desaparecido e possivelmente morto.
Foi exatamente o que aconteceu comigo na madrugada do dia em que o Brasil comemorava a data de sua independência: recebi a malvada informação do desaparecimento de meu sobrinho e afilhado Victor Hugo Ferraz de Sá, 23, morador de Gramacho, Baixada Fluminense. Ele era o segundo filho de minha irmã Lucia Helena Ferraz.
Comecei às 5h uma peregrinação com meus irmãos e amigos para tentar localizar o Victor e um outro jovem que também estava desaparecido, numa luta insana contra o tempo. A angústia, o desconforto, a dor no peito, a revolta são sensações que permeavam o corpo e a alma de quem precisava agir rápido, falar, ouvir e, principalmente, ser ouvido.
Foram horas de tensão, ligava para um, ligava para outro. A pior parte era a pergunta: "Mas eles eram bandidos?". "Não!", eu reclamava.
E, mesmo se fossem, eles são seres humanos como o menino Aylan Kurdi [refugiado sírio de três anos encontrado morto numa praia da Turquia], como o morador de rua Francisco da praça da Sé [morto ao salvar uma refém de um bandido, em São Paulo] ou como tantos outros que nossa insana naturalização do mal tende a julgar e condenar ao limbo da história.
A triste confirmação da morte veio por volta das 14h de terça. O corpo dele havia sido encontrado na parte de trás de um carro, num lugar ermo em Belford Roxo. Do corpo do amigo dele, até agora a família não teve notícias.
Diante da impunidade em relação aos homicídios neste país, me sinto um brasileiro descrente. Ninguém irá levar a julgamento o caso envolvendo o assassinato do meu sobrinho, muito menos apontar um culpado.
A dor que minha irmã sentiu é a mesma que sentiram a mãe do menino Eduardo de Jesus [morto a tiros no Complexo do Alemão em abril] e que agora está sentindo a mãe do menino Cristian, de Manguinhos [morto na terça, 8, durante uma operação da polícia na favela carioca].
Também é a mesma dor que sente a mãe de um policial que perde a vida na cruel batalha que tem dizimado centenas neste país.
Vivemos uma guerra que amanhã deixará mais 82 mães chorando porque seus filhos foram assassinados [o número se refere à quantidade de jovens executados no país diariamente, segundo dados da Anistia Internacional]. E, depois de amanhã, outras 82 mães se encontrarão na mesma situação.
Quando for a missa de sétimo dia do meu sobrinho, teremos a ultrajante soma de 574 mães que tiveram que enterrar de forma dolorosa seus filhos. E, pasmem, em 5 de agosto de 2016, quando o Rio estiver acendendo a tocha dos Jogos Olímpicos, cerca de 27 mil mães terão sepultado seus filhos na guerra mais insana que a história moderna já conheceu: o extermínio de jovens pobres num dos países mais ricos do planeta.
O sofrimento do outro não vale nada neste país. Estamos na era da maldade, onde as pessoas são mortas por motivos torpes, como o meu sobrinho e o amigo dele.
Victor Hugo, você foi mais um dos deserdados pela insensatez política e pela apatia de uma nação, mas eu sou seu tio, sou guerreiro, venci outras batalhas e também vencerei esta. Não deixarei que seu nome seja esquecido, que sua breve história de vida seja apagada.


Reprodução da Folha de São Paulo

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