quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Germany! Germany!

O vídeo causou impacto na internet, mas em geral não é apresentado na íntegra.
Numa escola de segundo grau, a chanceler alemã Angela Merkel falava sobre a questão dos refugiados do Oriente Médio. Uma sorridente aluna palestina, de 13 ou 14 anos, falando alemão perfeito, fazia uma ou outra pergunta genérica à chefe de governo, até que a instaram a contar sua verdadeira situação.
Os pais de Reem Shawil estavam ameaçados de deportação –e a menina, perfeitamente adaptada à Alemanha e amada por seus colegas, tinha medo do que lhe poderia acontecer.
"A política é dura por vezes", disse Angela Merkel, não sem simpatia. Mas continuou: não há como receber milhares de palestinos, de sírios, de africanos... A câmera estava fixada no rosto de Merkel (carinhosamente chamada de "Mutti", "mamãe", pelos seus compatriotas).
Houve uma pausa, um imperceptível peso nas pálpebras da governante. A mocinha palestina, exausta de tanto assentimento, começou a chorar silenciosamente. "Ora, ora", disse Angela Merkel, "você estava indo tão bem..."
Um dos professores pegou a deixa: não é questão de comportamento, ela está numa situação dramática! A chanceler não perdeu a calma. "Sei disso", respondeu, "e quero dar um abraço nela." Foi o que fez.
Apesar da forma com que o vídeo foi tratado na imprensa internacional ("Merkel faz criança palestina chorar", coisas desse tipo), o resultado foi favorável à primeira-ministra. Muitos atingidos pela guerra civil na Síria mandaram-lhe mensagens amorosas.
Não é tão paradoxal quanto parece. Esclareça-se, por exemplo, que uma lei promulgada pela própria Angela Merkel em junho deste ano assegura a permanência de menores de idade que tenham morado pelo menos quatro anos na Alemanha.
A discussão na escola da menina girava em torno do tempo necessário para a concessão de vistos.
Não que seja fácil, evidentemente, conseguir asilo por lá. Pelo menos, Angela Merkel fez o que nenhum político "normal" faria, no Brasil e talvez em muitos outros países: não enrolou, não fugiu da verdade.
Mais do que isso. Foi vaiada há poucos dias por um grupo xenófobo, quando visitava um abrigo de refugiados. A Alemanha é, de longe, o país europeu que mais os recebe.
Protestos neonazistas ocorrem; é provável que cresçam. Nada mais eloquente, entretanto, do que outro vídeo, divulgado também na televisão brasileira. Uma leva de migrantes se aproxima de seu destino e grita em inglês, triunfalmente: "Germany! Germany!".
Não é pouco, para um país manchado pelo genocídio nazista, ser agora visto como um lugar receptivo para os desterrados de todo o mundo.
Pensando ainda nos filmes sobre Jean-Paul Sartre que comentei na semana passada, assisti a um DVD baseado em sua peça "Os Sequestrados de Altona".
Foi encenada em 1959 e transformada em longa-metragem por Vittorio de Sica, com Sophia Loren e Maximilian Schell, três anos depois. Saiu dentro da coleção "Cultclassic" aqui no Brasil, com o título "O Condenado de Altona".
O tema é a Alemanha do pós-guerra. Um magnata dos estaleiros está morrendo e chama seu filho mais moço para cuidar da sucessão. Os dois se falam pouco; os jantares no palácio dos Gerlach carregam-se de tensão e de segredos.
Escondido no andar de cima, usando um uniforme da SS esfarrapado, está o outro filho do industrial. Foi acusado de crimes de guerra; entre o delírio e a lucidez, sobrevive acreditando que, passados quase 15 anos da derrota alemã, seu país continua em ruínas, com crianças comendo lixo pelas ruas.
É a irmã dele, meio incestuosa, que o mantém nessa mentira. Aos poucos, Sartre vai mostrando que os outros membros da família também navegam na falsidade e na arte de se autodesculpar.
Mesmo Sophia Loren, vivendo a personagem mais simpática do filme (não que os outros sejam vilões consumados), terá de decidir entre a mentira amorosa, como meio de perdão, e o enfrentamento de algo que ninguém quer suportar.
Também no Brasil temos nossos "criminosos de guerra" e os que ainda não tiraram seus uniformes esfarrapados, de vários modelos, aliás. O próprio Sartre, como sugeri no artigo anterior, estava sequestrado por muitas ilusões em seu apartamento de Montparnasse.
Que a Alemanha esteja se redimindo do passado, apesar das resistências e dificuldades, é uma das boas coisas do noticiário hoje em dia.


Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo

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