quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Sem palavras

Coluna escrita. Hora de enviar. Mas não. Aparece na tela do computador o indizível, o que "nem dez mandamentos vão conciliar e nem todos os unguentos vão aliviar". 
O que dizer destas imagens?
Um menino, vestido cuidadosamente por seus pais, antes da travessia para fugir das atrocidades do Estado Islâmico. Encontrou as portas da Europa fechadas. A UE transformou o Mediterrâneo no Mar da Morte. Foram mais de 2.600 só este ano. Muitas crianças, como o menino Aylan Kurdi, que tinha três anos.
As palavras não dão conta da dor.
O que dizer das várias fotos e vídeos que tomaram a internet nos últimos dias de pais e filhos, mães e filhas sendo alvo de cassetetes, bombas e humilhações atrozes em vários pontos da fronteira terrestre européia?
O que dizer, um pouco mais ao leste, do vídeo que circulou esta semana de um soldado israelense quebrando o braço de um pequeno garoto palestino e tentando prendê-lo ante a feroz resistência da mãe e da pequena irmã?
E, por aqui, o luto com a morte da garota Letícia da Silva, de 15 anos, a décima-nona vítima da chacina de Osasco. Mais uma da carnificina periférica.
Vem a dor de ver ceifadas vidas pequeninas, cheias de sonhos, por máquinas mortíferas como o sistema europeu de imigração, o exército israelense ou a polícia militar brasileira. Não há o que dizer.
Quem é mãe ou pai sente. Imagina que poderiam ser os seus e dificilmente consegue conter as lágrimas de revolta e compaixão. Mesmo quem não é dificilmente não se sensibiliza ante a cruel morte da criança.
Ainda que fosse morte natural seria intragável. Mas não é. É morte matada, como dizia João Cabral.
Se diante da imagem de Aylan até as palavras calam, que floresça então a solidariedade, a indignação e a resistência a uma forma social em que há vidas que valem e as que não valem, crianças sagradas e as descartáveis.
A chocante imagem do corpo de Aylan retrata a perversidade de um sistema que criou, por sua lógica de segregação, esta figura da "criança descartável".


Texto de Guilherme Boulos, na Folha de São Paulo.  Para ver as imagens referidas, siga o linque, e veja as fotos da Dogan News Agency e Associated Press.

Nenhum comentário:

Postar um comentário