Shabat
O sétimo dia da semana, ou da vida
RESUMO Este texto, originalmente veiculado no jornal "The New York Times", foi o último artigo de Oliver Sacks publicado durante sua vida. Previsto para esta edição, foi adiantado no site da Folha no domingo (30), após a morte do neurologista, que repassa aqui sua história à luz de sua relação com as tradições judaicas.
Minha mãe e seus 17 irmãos tiveram criação ortodoxa; todas as fotos do pai deles o mostram usando um quipá, e me contaram que ele acordava se o quipá caía de sua cabeça à noite. Meu pai também era de família ortodoxa. Meu pai e minha mãe tinham muita consciência do quarto mandamento ("Lembrarás e respeitarás o dia do shabat"), e o shabat (ou "shabbos", como dizíamos à nossa moda lituana) era completamente diferente do resto da semana. Não era permitido qualquer tipo de trabalho, não se podia dirigir carro ou usar o telefone; era proibido acender uma luz ou o fogão. Sendo médicos, meus pais faziam exceções. Eles não podiam tirar o telefone do gancho ou evitar completamente a possibilidade de dirigir: precisavam estar disponíveis para atender pacientes, se fosse preciso, para operar ou fazer partos.
Vivíamos numa comunidade judaica bastante ortodoxa em Crickle- wood, na zona noroeste de Londres. O açougueiro, o padeiro, a mercearia, a quitanda, a peixaria, todos fechavam suas portas para o shabat e não as reabriam até a manhã do domingo. Todos eles e também nossos vizinhos, imaginávamos, deviam festejar o "shabbos" mais ou menos como nós.
Por volta do meio-dia da sexta-feira, minha mãe se despia da identidade e roupa de cirurgiã e se dedicava a preparar "gefilte fish" e outras iguarias para o "shabbos". Logo antes do anoitecer ela acendia as velas rituais, murmurando uma prece com as mãos em volta das chamas. Todos nós vestíamos roupas limpas e nos reuníamos para a primeira refeição do shabat. Meu pai erguia seu cálice de prata de vinho e cantava as bênçãos e o "kiddush". Depois da refeição, ele nos liderava na prece de agradecimento pelos alimentos.
Na manhã do sábado, meus três irmãos e eu seguíamos nossos pais até a sinagoga de Cricklewood, na Walm Lane. Era uma "shul" (sinagoga) enorme, construída nos anos 1930 para receber parte do êxodo de judeus vindos do East End na época. Quando eu era menino, a "shul" vivia lotada, e todos tínhamos nossos lugares designados, os homens no térreo e as mulheres –minha mãe, diversas tias e primas– no andar de cima; quando eu era garotinho, às vezes acenava para elas durante o serviço religioso. Embora eu não entendesse o hebraico do livro de orações, adorava o som do idioma e apreciava especialmente ouvir as velhas orações medievais sendo cantadas, lideradas por nosso "hazan" maravilhosamente musical.
Depois do serviço religioso, todos nos encontrávamos e conversávamos diante da sinagoga. Geralmente caminhávamos de lá até a casa de minha tia Florrie e seus três filhos, para dizer um "kiddush", acompanhado por vinho tinto e pãezinhos de mel, justamente o suficiente para estimular nossos apetites para o almoço. Depois de um almoço frio em casa –"gefilte fish", salmão poché, gelatina de beterraba–, as tardes de sábado, se não fossem interrompidas por ligações médicas de emergência a meus pais, eram dedicadas a visitas de família. Tios, tias e primos nos visitavam para tomar o chá da tarde, ou nós os visitávamos; todos morávamos perto uns dos outros, a distâncias que podiam ser percorridas a pé.
A Segunda Guerra dizimou nossa comunidade em Cricklewood, e a comunidade judaica na Inglaterra como um todo perderia milhares de pessoas nos anos do pós-Guerra. Muitos judeus, incluindo primos meus, emigraram para Israel; outros para a Austrália, o Canadá ou os Estados Unidos; meu irmão mais velho, Marcus, se mudou para a Austrália em 1950. Muitos dos que ficaram assimilaram ou adotaram formas diluídas e atenuadas de judaísmo. Nossa sinagoga antes lotada foi ficando mais vazia a cada ano.
Cantei minha parte no meu bar-mitzvá em 1946 diante da sinagoga relativamente cheia, incluindo várias dezenas de parentes meus, mas, para mim, isso marcou o fim da prática judaica formal. Eu não aderi aos deveres rituais de um judeu adulto e fui ficando mais indiferente aos hábitos e crenças de meus pais, ainda que não tenha havido um ponto de ruptura até meus 18 anos. Foi então que meu pai, perguntando sobre meus sentimentos sexuais, me obrigou a admitir que eu gostava de meninos.
"Nunca fiz nada", disse. "É só um sentimento. Mas não conte à mamãe. Ela não vai aceitar."
Mas ele contou e, na manhã seguinte, ela desceu com uma expressão de horror no rosto e gritou comigo: "Você é uma abominação. Eu queria que você nunca tivesse nascido". (Sem dúvida pensando no versículo do Levítico que diz: "Quando também um homem se deitar com outro homem como com mulher, ambos fizeram abominação; certamente morrerão; o seu sangue é sobre eles".)
O assunto nunca voltou à baila, mas as palavras de minha mãe me fizeram odiar a capacidade de preconceito e crueldade da religião.
Depois de me formar médico, em 1960, abandonei abruptamente a Inglaterra, a família e a comunidade que tinha ali e fui para o Novo Mundo, onde não conhecia ninguém. Quando me mudei para Los Angeles, encontrei uma espécie de comunidade entre os levantadores de peso de Muscle Beach e também com meus colegas residentes de neurologia na UCLA, mas eu ansiava por algum vínculo mais profundo –algum "sentido"– em minha vida, e acho que foi a ausência disso que me levou à dependência quase suicida de anfetaminas na década de 1960.
Minha recuperação começou, lentamente, quando encontrei trabalho em Nova York, num hospital para doentes crônicos no Bronx (o Mount Carmel, sobre o qual escrevi em "Tempo de Despertar"). Meus pacientes me fascinavam, me preocupava muito com eles e sentia quase como uma missão relatar suas histórias –relatos de situações virtualmente desconhecidas do grande público e, de fato, de muitos de meus colegas, histórias quase inimagináveis.
Eu tinha descoberto minha vocação, e mergulhei nela obstinada e concentradamente, com pouco incentivo de meus colegas. Quase sem ter consciência disso, me tornei contador de histórias numa época em que a narrativa médica estava quase extinta. Isso não me dissuadiu, pois eu sentia que minhas raízes estavam nos grandes estudos de caso neurológicos do século 19 (e eu me sentia incentivado nisso pelo grande neuropsicólogo russo A. R. Luria). Era uma vida solitária, mas imensamente satisfatória, quase monacal, que eu levaria por muitos anos.
Nos anos 1990, conheci um primo meu, Robert John Aumann, homem de aparência notável, com porte atlético e forte e longa barba branca que o fazia parecer um sábio idoso, mesmo aos 60. Ele é um homem dotado de grande poder intelectual, mas também de grande calor humano e ternura, além de um engajamento religioso profundo –na verdade, "engajamento" é uma de suas palavras favoritas. Embora ele defenda a racionalidade na economia e nos assuntos humanos, para ele não há conflito entre razão e fé.
Ele insistiu que eu tivesse uma mezuzá sobre minha porta e me trouxe uma de Israel. "Sei que não acredita, mas deveria ter uma ainda assim", falou. Eu não me opus.
Em uma entrevista notável de 2004, Robert John falou de seu trabalho com matemática e a teoria dos jogos mas também de sua família, de como costumava esquiar e escalar montanhas com alguns de seus quase 30 filhos e netos (um cozinheiro kosher os acompanhava, levando panelas) e da importância do shabat para eles.
"A observância do shabat é muito bela", ele disse, "e é impossível sem ser religioso. Não se trata sequer de melhorar a sociedade –é uma questão de melhorar nossa própria qualidade de vida."
Em dezembro de 2005, Robert John recebeu um Prêmio Nobel por seus 50 anos de trabalho fundamental para a matemática. Ele não foi um convidado muito fácil para o comitê do Nobel, pois foi a Estocolmo com sua família, incluindo muitos dos filhos e netos, e todos tiveram que ter pratos, utensílios e alimentos kosher, além de roupas formais especiais, sem misturas biblicamente proibidas de lã e linho.
Naquele mesmo mês descobri um câncer em um olho e, enquanto estava internado para tratamento, no mês seguinte, Robert John foi me visitar. Ele contou muitas histórias divertidas sobre o Nobel e a cerimônia em Estocolmo, mas fez questão de dizer que, se tivesse sido obrigado a viajar num sábado, teria recusado o prêmio. Seu compromisso com o shabat, com sua paz e sua distância absoluta das questões mundanas, teria pesado mais até que um Prêmio Nobel.
Em 1955, aos 22 anos, fui a Israel por vários meses para trabalhar num kibutz, e, embora tenha gostado, decidi não voltar. Apesar de muitos de meus primos terem se mudado para lá, a política do Oriente Médio me perturbava, e eu desconfiava de que me sentiria deslocado em uma sociedade tão religiosa. Mas, na primavera de 2014, quando soube que minha prima Marjorie –uma protegida de minha mãe que, médica como ela, tinha trabalhado até os 98 anos– estava perto da morte, telefonei para ela, lá em Jerusalém, para me despedir. Sua voz soou inesperadamente forte, o sotaque parecido ao de minha mãe. "Não pretendo morrer agora", disse. "Faço cem anos em 18 de junho. Você vem?"
"Sim, é claro!", disse. Quando desliguei, percebi que, em segundos, tinha revertido uma decisão tomada quase 60 anos antes. Foi uma visita puramente familiar. Comemorei o 100º aniversário de Marjorie com ela e sua família extensa. Vi dois outros primos que me foram caros em meus tempos de Londres, inúmeros primos de segundo grau ou mais distantes e, é claro, Robert John. Senti-me abraçado por minha família como desde a infância não sentia.
Eu tinha tido certo receio de visitar minha família ortodoxa com meu namorado, Billy –as palavras de minha mãe ainda ecoavam em minha cabeça–, mas ele também foi recebido calorosamente. Ficou muito claro quanto as atitudes tinham mudado, mesmo entre os ortodoxos, quando Robert John convidou Billy e eu para dividir a refeição inicial do shabat com ele e sua família.
A paz do shabat, de um mundo que para, de um tempo fora do tempo, era palpável; tudo se embebia dela, e eu me senti dominado pela saudade e me vi perguntando "e se": e se A, B e C tivessem sido diferentes? Que tipo de pessoa eu poderia ter sido? Que tipo de vida poderia ter vivido?
Em dezembro de 2014, completei minha autobiografia, "Sempre em Movimento", e entreguei o manuscrito ao meu editor, sem ter ideia de que dias mais tarde eu descobriria que tinha câncer metastático, resultante do melanoma que tivera em meu olho nove anos antes. Fico feliz por ter conseguido concluir meu livro de memórias sem ter conhecimento disso e de, pela primeira vez na vida, ter conseguido fazer uma declaração plena e franca de minha sexualidade, enfrentando o mundo abertamente, sem mais culpa e segredos trancados dentro de mim.
Em fevereiro senti que precisava ser igualmente aberto em relação a meu câncer e ao fato de estar diante da morte. Eu estava no hospital quando meu ensaio sobre isso, "Minha Vida", foi publicado no "New York Times". Em julho escrevi outro texto para o jornal, "Minha Tabela Periódica", em que o cosmos físico e os elementos que eu amava ganharam vida própria.
Agora, enfraquecido, com falta de ar, com meus músculos antes firmes desgastados pelo câncer, vejo meus pensamentos centrados cada vez mais não no sobrenatural ou espiritual, mas no que significa viver uma vida boa e que valha a pena –conquistar um sentimento de estar em paz comigo mesmo. Percebo meus pensamentos vagando em direção ao shabat, o dia do descanso, o sétimo dia da semana e, quem sabe, também o sétimo dia de nossas vidas, em que podemos sentir que nosso trabalho foi feito e que já podemos descansar com a consciência tranquila.
Reprodução da Folha de São Paulo.
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