REINALDO JOSÉ LOPES
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
A primeira aventura da vida de Oliver Wolf Sacks parecia, a princípio, algo saído de "As Crônicas de Nárnia".
Para escapar dos ataques aéreos nazistas a Londres na Segunda Guerra Mundial, ele e seu irmão Michael, ainda crianças, foram mandados para o interior da Inglaterra, tal como os personagens do clássico infantil.
Os irmãos não tiveram a sorte de descobrir um mundo mágico, como as crianças do livro –do tempo de refugiados, ficou a memória da dieta desagradável (brócolis e beterraba) e das surras no colégio interno que os abrigara.
Mas Sacks acabaria dominando à perfeição a arte de descrever universo tão inusitado quanto o dos faunos e centauros de Nárnia: o mundo interno das pessoas cujo funcionamento cerebral, por algum motivo, está fora dos padrões normais.
Os títulos dos livros de Sacks dão uma pista dessa miríade de universos paralelos produzidos pelo cérebro: "O Homem que Confundiu Sua Mulher com um Chapéu" (referência à agnosia visual, uma incapacidade de reconhecer objetos com precisão), "Um Antropólogo em Marte" (sobre como os autistas não conseguem decifrar relações sociais) ou o autoexplicativo "Alucinações Musicais". O próprio Sacks sofria de prosopagnosia, uma dificuldade crônica de reconhecer rostos.
Nos livros de Sacks, os problemas neurológicos nunca são tratados como mera esquisitice. O narrador adota ponto de vista imersivo, mimetizando em detalhes a perspectiva única dos personagens –em geral, pacientes que Sacks conhecera ao longo de meio século de experiência como neurologista.
Ele morreu em Nova York no domingo (30), aos 82 anos, em casa, devido a um câncer . Trabalhou até os últimos dias, segundo sua equipe. Dois artigos seus devem ser publicados nesta semana.
LONDRES A NOVA YORK
Nascido em 1933 numa família de judeus britânicos, filho de médicos e o mais novo de quatro irmãos, Sacks flertou com a química antes de seguir a paixão familiar por medicina.
Estudou na Universidade de Oxford. Depois de formado, passou pelo Canadá e pela Califórnia antes de se fixar em Nova York, em 1965. Nunca mais deixou os EUA, embora seu sotaque britânico tenha permanecido inalterado.
O médico passou a atuar no hospital Beth Abraham e a dar aulas na Faculdade de Medicina Albert Einstein (também seria professor e "artista residente" na Universidade Columbia, cargo criado especialmente para ele).
Foi no Beth Abraham que Sacks teve contato com pacientes que sofriam de encefalite letárgica, doença de causas ainda misteriosas que, em casos extremos, transformava os doentes em "belas adormecidas", que mal conseguiam ficar despertos.
O neurologista foi um dos primeiros a tratar esses pacientes com medicamento L-Dopa, experiência relatada no livro "Tempo de Despertar", adaptado para o cinema (com Robert De Niro e Robin Williams no elenco).
Em entrevista à Folha, em 2010, Sacks contou que deixava o contato natural com pacientes inspirar seus livros. "Depende de quem me contata, do que acontece no meu cotidiano. Acidentes desempenham papel muito grande no cotidiano do médico. As coisas não são nem de longe tão sistemáticas quanto o dia a dia de um cientista".
Apesar do prestígio crescente dos livros, preferia adotar atitude de modéstia. "Não penso em mim como homem de letras. O que tento é dizer as coisas com a maior clareza e naturalidade possíveis."
CELIBATO
Paradoxalmente, o médico cheio de empatia, cujos textos eram capazes de fazer com que qualquer um se sentisse na pele de seus pacientes, era inepto quando tinha de se relacionar com as pessoas fora do consultório.
Sacks nunca se casou nem morou com ninguém. Costumava se descrever como celibatário contumaz, um sujeito para quem a timidez chegava a ser uma doença.
Sacks nunca se casou nem morou com ninguém. Costumava se descrever como celibatário contumaz, um sujeito para quem a timidez chegava a ser uma doença.
Ao que parece, era no ato de escrever que o neurologista conseguia quebrar esse campo de força invisível que havia entre ele e o mundo. Foi num ensaio para o "New York Times" que Sacks expôs seu diagnóstico de câncer terminal –metástases que tinham tomado um terço de seu fígado, nove anos depois do tumor que o deixara cego de um olho– e o significado de encarar a morte de frente, com o máximo de lucidez.
Uma das primeiras atitudes depois da "sentença de morte" médica foi reler a autobiografia do filósofo britânico David Hume (1711-1776), espécie de "príncipe dos céticos" entre os pensadores do Iluminismo, cujas ideias sempre seduziram Sacks.
Quando o médico compara a própria trajetória com a de Hume, porém, o que predomina nos parágrafos não é ceticismo, mas serenidade e senso de transcendência que alguém poderia classificar como quase religioso, se não estivesse saindo da pena de autoproclamado "velho judeu ateu".
"Não posso fingir que não esteja sentindo medo", escreveu Sacks. "Mas meu sentimento predominante é o de gratidão. Amei e fui amado; muito me foi dado, e em troca também dei muito. Acima de tudo, fui ser autoconsciente, um animal pensante neste planeta lindo, e isso, por si só, foi um enorme privilégio."
Reprodução da Folha de São Paulo.
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