quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Guatemala vota sob o olhar da rua

O Congresso guatemalteco deu nesta terça-feira (1º) um passo inédito na sua história, além de raro na conturbada história da América Latina: retirou a imunidade do presidente, o general Otto Pérez Molina, 64 anos, o que permite que seja investigado pelo Ministério Público.
O presidente é acusado de participar de um esquema de fraude alfandegária que já levou à prisão a sua vice-presidente, Roxana Baldetti.
Pérez Molina continua no cargo até a posse, em janeiro, de seu sucessor, a ser eleito no domingo, dia 6, ou seja, apenas cinco dias após a decisão do Congresso. A menos, é claro, que seja condenado pela Justiça antes disso.
A retirada da imunidade foi consequência de uma intensa mobilização popular, considerada inédita no país. Mobilização que se manteve cada vez mais intensa mesmo à medida que se aproximava a data da eleição.
Em tese, a proximidade do voto deveria amortecer os protestos, porque votar é a maneira mais clássica de punir governantes que, por uma razão ou outra, desagradam o eleitorado.
Acontece que o que está acontecendo na Guatemala é uma revolta popular contra o sistema político em geral, não apenas contra o presidente de turno.
"Os partidos políticos da Guatemala tendem a ser máquinas clientelistas que perseguem o poder para extrair benefícios pessoais, em vez de canalizar demandas políticas mais amplas", diz relatório recente da CICIG (Comitê Internacional contra a Impunidade na Guatemala, grupo criado pela ONU e que desempenhou papel vital na investigação sobre Pérez Molina).
Reforça Arturo Matute, representante na Guatemala do International Crisis Group:
"A renúncia do presidente foi um objetivo específico, mas a sociedade guatemalteca se manifesta também contra o sistema político que não a representa e que, por fim, ficou desmascarado quanto à profundidade e o alto nível de corrupção".
Por isso, acha Matute, "os protestos vão continuar".
Ou seja, o presidente a ser eleito neste domingo já começará sob inédita vigilância social.
Prevê, por exemplo, o jornal "Siglo 21":
"O combate à corrupção se coloca como a primeira tarefa que espera a nova administração. Seu trabalho estará sob o olho vigiante da cidadania, que, sem dúvida alguma, ao primeiro sinal nebuloso, poderá iniciar um movimento depurador que está latente, porque tudo o que aconteceu recentemente [as mobilizações de protesto] é caldo de cultura para uma explosão social".
A perspectiva de novos protestos se torna ainda mais forte quando se sabe que o favorito para suceder Pérez Molina é Manuel Baldizón, sobre o qual escreve Matute, do International Crisis Group:
"A situação jurídica pessoal de Baldizón não está comprometida neste momento. Mas há petições para suspender a imunidade de seu companheiro de fórmula, Edgar Barquín, de cinco deputados de seu partido e de um candidato a prefeito".
Reforça Phillip Chiccola, colunista da revista "ContraPoder":
"Manuel Baldizón vê como, um por um, seus quadros mais próximos têm sido apontados como participantes em tráfico de influência, intermediação de negócios, enriquecimento ilícito e lavagem de dinheiro".
A Guatemala chega, portanto, à eleição diante do dilema assim apontado por pronunciamento do International Crisis Group:
"A Guatemala tem uma oportunidade de superar uma herança de impunidade, instituições fracas e partidos deficientes. Ao mesmo tempo, há o perigo de que a esperança possa se transformar em frustração e até em violência se os atores políticos falharem em respeitar as regras constitucionais e se aqueles escolhidos nas eleições de 6 de setembro ignorarem as demandas populares por justiça e transparência".


Texto de Clóvis Rossi, na Folha de São Paulo

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