domingo, 20 de setembro de 2015

Bartira e os arquivos do Dops

ARQUIVO ABERTO

Bartira e os arquivos do Dops

Recife, 1990
GILVAN BARRETO

"– Eles ainda estão por aí.
– Quem?
– Os mesmos que cometeram todas as atrocidades na ditadura."
Seu nome era Bartira. Mas não conseguia lembrar de onde eu a conhecia. A conversa ocorreu em 26 de setembro de 2013, em meio ao burburinho da abertura de uma exposição das imagens do meu primeiro livro, "Moscouzinho" (Tempo D'Imagem). Mas quem é essa mulher?
Moscouzinho era a alcunha de minha cidade natal, Jaboatão dos Guararapes, na Grande Recife. Tinha tanto comunista na nossa Soviete tropical que assim ficou conhecida. O livro recria lembranças da minha infância acompanhando meu pai, que era político da esquerda pernambucana, em campanhas e outros compromissos. Achava que toda criança, como eu, era rascunho de homem público.
Essa influência me moldou. Foi meu pai, por exemplo, que despertou minha atenção para o educador Paulo Freire.
O autor da "Pedagogia do Oprimido" chegou a viver em Jaboatão. Quando era pequeno, meu pai me mostrava com orgulho a casa onde Freire morou. Em 1996, retratei Paulo Freire em uma cerimônia de alfabetização de adultos cortadores de cana. Foi emocionante ouvir relatos de novos letrados, inaugurando discursos de liberdade.
Freire era uma espécie de padrinho da Escola Parque do Recife (EPR), onde estudei da alfabetização até o vestibular. Freire era primo de Maria Adozinda Monteiro, conhecida como tia Doza. Ao lado de Myrtha Carvalho e Malba Magalhães, Doza fundou a EPR em 1978. A escola ocupava um casarão antigo na avenida Beira Mar, no bairro de Boa Viagem, e a cada eleição ganhava uma nova pintura da Brigada Portinari (grupo de artistas responsáveis pelos murais políticos mais lindos de Pernambuco nos anos 1980).
Foi lá, em meados daquela década, que conheci Bartira Ferraz. Em meio ao barulho da abertura da minha exposição, passadas quase três décadas, a lembrança clareou. Bartira, na época da Escola Parque, tinha pouco mais de 20 anos e estava em seu primeiro trabalho formal como professora de história. Ela se divertiu ao ouvir que meu grupinho de adolescentes a havia escolhido como a professora mais gata da escola.
Poucos anos depois, Bartira se tornou uma pesquisadora infiltrada na Secretaria de Segurança Pública com a missão de localizar os arquivos secretos da ditadura. Em dezembro de 1990, em ambiente ainda marcado pela tortura, conseguiu as chaves de uma sala havia anos lacrada e resgatou uma pasta repleta de nomes de desaparecidos políticos.
Com apoio da Ordem dos Advogados do Brasil, a descoberta foi confirmada. Vinha à tona o primeiro arquivo do Dops (Departamento de Ordem Política e Social) no Brasil. A OAB e militares pediram a intervenção dos documentos e trabalharam, em paralelo, no mesmo ambiente. De um lado, pesquisadores tentando catalogar e identificar os registros. Do outro, soldados fardados confiscando e destruindo o material. Bartira lembra que alguns documentos importantes foram retirados do local embaixo das roupas dos pesquisadores.
Bartira começava a reviver o terror dos tempos de chumbo em plenos anos 1990. Além dos saques dos militares fardados aos documentos, os pesquisadores eram constantemente intimidados por delegados e policiais que exigiam que seus nomes sumissem do material. Ela, que também trabalhava na Fundação Joaquim Nabuco, vinculada ao governo federal, foi imediatamente demitida. Passou a ser seguida diariamente por quatro homens. Por segurança, calculava o tempo dos deslocamentos pela cidade e informava aos pais os itinerários.
A pressão e os danos psicológicos estimularam um autoexílio. Bartira conseguiu uma bolsa e foi viver na Áustria, depois na Alemanha, e voltou ao Brasil quando decidiu ter filhos.
Hoje, a professora é uma jovem avó sorridente e tranquila. Nesse reencontro a nossa conversa acabou entre as fotocolagens com reproduções dos arquivos da ditadura às margens do rio Capibaribe, a poucos metros do prédio onde funcionou o Dops, palco de covardias institucionais contra os direitos humanos.
Em tempos de crescentes ondas antidemocráticas, penso como fazem falta Bartiras, Dozas, Paulos, Myrthas, Malbas e tantos outros que permitam uma educação com foco no desenvolvimento e libertação das pessoas. Não falo da educação que gera sensação de distinção, mas da que nos une e nos mantém de pé. Que incentiva o pensamento crítico, mas nos faz sonhar coletivamente. Ensinamentos de gente que acredita no afeto como uma porta aberta para dias melhores.


Reprodução da Folha de São Paulo

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