domingo, 20 de setembro de 2015

Inspirado em Clarice, Zambra impõe clima singular a relatos

Inspirado em Clarice, Zambra impõe clima singular a relatos

'Meus Documentos', de Alejandro Zambra, é zênite de obra em ascensão
JOCA REINERS TERRONESPECIAL PARA A FOLHA

Em tempos de desvalorização da escrita literária, torna-se inverossímil a figura de um escritor cuja obra seja marcada pelos resultados da leitura. Parodiando o escritor sueco Stieg Larsson (1954-2004), esta é a era dos "escritores que não amam os livros".
Há exceções, e desde a estreia com "Bonsai" (2006) o chileno Alejandro Zambra aguça suas qualidades de leitor: da literatura propriamente dita (de escritores como o peruano Julio Ramón Ribeyro, o italiano Cesare Pavese e Clarice Lispector), à realidade lida com olhar acostumado ao abismo entre o que se diz e o que se escreve.
Nesse sentido, "Meus Documentos" é o ponto alto da obra em constante ascensão caracterizada por mirada introspectiva. Nos onze relatos, certo clima singular se impõe, sugerido pela voz afetuosa e irônica que parece revelar situações demasiado pessoais: o orgulho melancólico do tabagista em "Eu Fumava Muito Bem", por exemplo, e a quase integralidade das crônicas das duas seções iniciais, embebidas na cronologia familiar imiscuída à história do Chile pós-Allende.
Em coletânea anterior, a excelente (e infelizmente inédita no Brasil) "No Leer" (2010), Zambra estabeleceu, extraída de frase de Clarice, a sua poética: "para fazer literatura é necessário não fazer literatura".
O paradoxo serve ao propósito de compreender o estilo do chileno: feito de leituras, confunde-se com uma conversa na qual sabemos das lições de macheza dadas por Camilo, o primo postiço, ou dos perrengues vividos no exílio por Rodrigo, o homem mais chileno do mundo.
Não por acaso, a chilenidade se impõe como subtexto dos episódios: a violência, a ditadura escolar, a vergonha de sobreviver a Pinochet (1915-2006,), uma vergonha que o chileno arrasta pelo mundo, dos bairros de Santiago ao interior de um táxi sequestrado na Cidade do México, chegando ao Brasil de modo insuspeitado.
Com seus livros de leitor de Lispector, Zambra propõe curioso retorno da escritora ao público brasileiro, ecoando-a ("digo o que tenho que dizer, sem literatura", esta é a frase dela), como se nos perguntasse: e agora, vocês que não amam os livros, que tanto fizeram para esquecer de Clarice Lispector, o que farão?
É uma boa pergunta, considerando a atual repercussão da escritora no exterior.

MEUS DOCUMENTOS
AUTOR Alejandro Zambra
TRADUÇÃO Miguel Del Castillo
EDITORA Cosac Naify
QUANTO R$ 32,90 (224 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo

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