Após um ano em São Paulo, regressei à Europa. Digo-vos que parti com enormes inquietações sobre o futuro próximo do vosso país, mas também com a convicção de que existem condições para que o Brasil retome o caminho do progresso social.
Já tinha ido muitas vezes ao Brasil, sobretudo nos anos 80 e 90, mas sempre em estadias curtas. O Brasil que conheci no século passado era um dos países mais injustos do mundo, mas vivia o entusiamo da democracia reencontrada.
Quando cheguei ao Instituto de Relações Internacionais (IRI) da Universidade de São Paulo em junho de 2014, o Brasil era um país mais justo e influente — embora marcado ainda por fortes desigualdades sociais — em que 60 milhões de pessoas tinham saído da miséria e ascendido a uma nova, ainda que frágil, classe média; um país em que a sociedade de informação dera voz a milhões — o quarto país entre os utilizadores do Facebook, o segundo do Twitter; um país emergente, mas onde a situação económica começava a inquietar muitos.
O Brasil de 2014, porém, era já marcado por uma polarização maligna que a campanha eleitoral iria agravar e que o pós-eleições iria tornar numa ameaça real para a governabilidade, com o fracasso eleitoral da alternativa aos 12 anos de governo do PT e a investigação de graves atos de corrupção.
Regressei preocupado com o ressurgimento, passados 50 anos, do ódio político que foi o fermento que fez crescer o golpismo que impôs a ditadura, como bem mostra o livro de memórias de Almino Afonso, ministro do Trabalho de João Goulart, e o muito bem documentado 1964, de Jorge Ferreira e Ângela de Castro Gomes. A hipótese de um golpe militar parece-me afastada do horizonte de tal forma a democracia se consolidou (e a política americana se alterou). O ódio político, porém, impede o esclarecedor debate contraditório e alimenta a procura de soluções fora dos processos eleitorais.
Em 2015, o ódio é canalizado sobretudo contra o PT, particularmente em São Paulo, mas enganam-se os democratas que dele pensam colher benefícios. Amanhã, podem vir a ser as vítimas desse ódio. Não é aceitável que a sede da Fundação do ex-Presidente Lula seja atacada à bomba e que políticos sejam agredidos verbalmente mesmo em hospitais.
O Brasil atravessa hoje uma crise económica, mas a realidade é que a verdadeira crise é política.
Parti com a convicção de que a polarização e a fragmentação do sistema político paralisam a capacidade da democracia brasileira em dar respostas aos problemas mais urgentes. Incapacidade que é fator de descrença nos partidos políticos e facilita o crescimento de correntes conservadoras de inspiração religiosa, nomeadamente os evangélicos, com influente presença parlamentar. Esta polarização impede a necessária convergência entre o PT e o PSDB e tem atirado o PSDB para posições distantes da sua matriz social-democrata. Polarização que lançou Lula e Fernando Henrique Cardoso, os irmãos inimigos a quem a democracia brasileira tanto deve, numa competição estéril para o lugar cimeiro na História.
A sociedade civil e as redes sociais emergem, à esquerda e à direita, como atores incontornáveis. Os partidos já não detêm o monopólio da representação e o PT e os sindicatos perderam as ruas. As manifestações de junho de 2013, contra o aumento do preço dos transportes, e as de abril e agosto de 2015, contra o Governo e corrupção, são exemplos disso. Estas manifestações têm em comum o facto de terem sido organizadas através das redes sociais, mas representam diferentes tendências. Enquanto as manifestações de 2013 exigiam melhores serviços públicos e uma democracia mais participativa, em 2015 a rua foi ocupada por movimentos da classe média alta, de contestação aos partidos políticos, incluindo uma minoria que apela ao regresso dos militares.
Mas claro que não vim do Brasil só com más noticias. No IRI pude trabalhar com brilhantes analistas da Sociologia, da Política e das Relações Internacionais. Acompanhei de perto o trabalho da Comissão Nacional da Verdade, coordenada por Pedro Dallari, diretor do IRI, e testemunhei o sobressalto cívico que representou o trabalho desenvolvido, tanto da comissão nacional como das numerosas comissões regionais, e o empenho da sociedade civil e da universidade nesse esforço cidadão. Um esforço de memória do passado que garanta a defesa dos direitos humanos no presente. Vi o meu amigo Renato Janine Ribeiro, filósofo com quem colaborava na USP, ser nomeado ministro da Educação com um projeto ambicioso de valorização do ensino primário, essencial para o empoderamento dos cidadãos. Constatei que a corrupção começa a ser combatida por um sistema de justiça independente. Frequentei regularmente o Museu Afro Brasil, onde se valoriza a herança negra do país, parte de um vasto movimento para desconstruir a herança da escravatura que nega a retórica do luso-tropicalismo. Conversei com refugiados sírios, dos milhares a quem o Brasil deu visto e hospitalidade (2077 registados mais que nos Estados Unidos).
Sim, há muitos bons exemplos no Brasil que bem podem ser úteis a Portugal.
Viajei pelo Norte e Nordeste e pude confirmar o que os dados estatísticos indicavam: o Sertão estava a virar mar e a miséria que mobilizou o bispo do Recife, D. Hélder Câmara, foi combatida com algum sucesso, mas o risco de retrocesso é real.
Vivi em São Paulo, cidade cosmopolita, com uma sociedade civil ativa, instituições de reputação mundial e uma enorme oferta cultural; uma Paris ou Nova Iorque dos trópicos, em que o cinema é rei, com numerosos festivais, como o do Cinema Árabe.
O que me espanta é que seja nessa mesma São Paulo que se encontra o mais profundo ódio social contra a nova classe média — que ocupa o espaço público, até há uns anos reservado à elite. Mas é no pluralismo cultural, político e na pujança da sociedade civil, nomeadamente de São Paulo, que reside o futuro do Brasil.
Reprodução do Público.
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