terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Seymour Hoffman em Lisboa

Se o ator Philip Seymour Hoffman morasse em Portugal, ele teria morrido com uma overdose de heroína? A pergunta pode parecer absurda. Mas ela foi formulada por um colega do "métier", Russell Brand, em artigo para o "Guardian".
Tese de Russell Brand: o grandioso Seymour Hoffman morreu como normalmente morrem os viciados no produto. Só. Escondido. Longe de amigos e familiares. Isso se deve ao fato de os Estados Unidos continuarem a criminalizar a posse e o consumo de drogas, fazendo do viciado um pária.
Exatamente o contrário do que acontece em Portugal, onde só o tráfico é punido criminalmente. A posse e o consumo deixaram de habitar o planeta criminal e são hoje uma infração administrativa, que termina muitas vezes com o tratamento do viciado.
Russell Brand tem razão e não tem razão. Mas, primeiro, convém ir aos fatos. O jurista norte-americano Glenn Greenwald, em estudo intitulado "Drug Decriminalization in Portugal" para o Cato Institute (um "think tank" conservador), olhou para o caso português. E gostou do que viu.
Em 2001, Portugal tornou-se o primeiro país da União Europeia a "descriminalizar" todas as drogas (heroína inclusa). Por outras palavras: recusando os extremismos que existem sobre a matéria --proibição absoluta ou liberalização absoluta-- os lusos optaram pela "via media".
O consumo deixou de ser crime; passou a sofrer uma sanção administrativa (através de coimas, por exemplo). E o consumidor deixou de lotar os presídios; começou a ser encaminhado para o tratamento respectivo.
Isso permitiu aos governos poupar recursos na punição judicial do viciado, reforçando os mecanismos terapêuticos. Ao mesmo tempo, os viciados que temiam as consequências criminais começaram a olhar para o tratamento do vício com outra atitude. Resultados?
O consumo de drogas baixou na generalidade do país, ao contrário do que sucedeu nos outros parceiros da União Europeia. Doenças associadas ao vício --Aids, hepatite etc.-- também baixaram. E, claro, o número de mortes por consumo de drogas seguiu a mesma tendência.
Último pormenor: Portugal não se transformou na Disneylândia do consumo europeu, desmentindo os cenários mais catastrofistas. A vida corre normalmente por aquelas bandas e ninguém pensa em reverter a legislação sobre a matéria.
O estudo de Glenn Greenwald sobre o sucesso português, disponível na internet (http://bit.ly/1gDkMgD), merece ser lido por qualquer governo interessado em enfrentar o problema das drogas no seu país.
Mas é preciso uma dose homérica de ingenuidade para restituir a vida a Philip Seymour Hoffman, imaginando o ator em Lisboa.
A legislação portuguesa tem limites. E esses limites começam quando existe uma vontade irreprimível do sujeito em promover a sua própria destruição. Os governos não salvam almas. Podem é salvar corpos, se houver oportunidade e vontade de os encontrar.
Porque, no fundo, o problema das drogas é anterior a qualquer lei. Ele começa, e às vezes acaba, nesse vazio imenso por onde se perdeu agora um dos maiores criadores do cinema do nosso tempo.


Da coluna de João Pereira Coutinho na Folha de São Paulo

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