quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

O obituário de Myrdal


Uma das coisas que mais gosto de ler na Folha é a seção de obituários. Eles, paradoxalmente, proporcionam alívio no meio dos conflitos que ocupam o espaço primordial de um jornal. Em geral, tratam de pessoas pouco conhecidas, mas que deixaram uma marca: o cozinheiro querido de uma família paulistana, o jovem professor de caratê que não suportou a perda da mãe, uma senhora de Mococa, que morreu no dia em que voltou da realização do sonho de conhecer Paris etc.
Obituários também dão um sentido da perfeição da vida. "Perfeito" é uma palavra formada pelo prefixo "per", que significa "ao longo de", e pelo particípio do verbo "fazer", isto é, "feito ao longo". No sentido de ausência de falhas, a perfeição exige paciência, repetição e esmero. Uma vida se faz ao longo de si mesma. Assim, só pode ser perfeita quando acaba. Talvez venha daí a beleza de um obituário.
Ao escrever a coluna "As razões da esquerda", de 16/1/2014, deparei-me no "New York Times" com um obituário do economista sueco Gunnar Myrdal (http://www.nytimes.com/1987/05/18/obituaries/gunnarmyrdal-analyst-of-race-crisis-dies.html), cujos principais aspectos são livremente retratados a seguir.
Myrdal teve formação com forte base quantitativa e foi, nos anos 1920, um dos fundadores em Londres da Sociedade de Econometria. Mais tarde, porém, apontou que o movimento errava ao ignorar a questão da distribuição da riqueza e por não notar aspectos técnicos como "correlações não são explicações".
Em 1930, aos 31 anos, em seu primeiro livro, "Aspectos políticos da teoria econômica", Myrdal reafirma sua disposição para o embate intelectual e político, advogando que a ortodoxia distorce a teoria e a lógica para defender o status quo.
Não à toa costumava ser depreciativamente tido por economistas ortodoxos como um sociólogo. No entanto, ganhou em 1974 o Prêmio Nobel de Economia, que numa decisão salomônica foi divido com o conservador austríaco Friedrich Hayek.
Em 1976, disse que foi surpreendido pela premiação e que deveria tê-la recusado, pregando sua extinção, pois, como uma ciência "leve", a economia é carregada de juízos morais. Os economistas são influenciados por seus vieses sociais e tendem a errar quando reduzem a economia a números abstratos.
Na Suécia, nos anos 1930, Myrdal, juntamente com sua mulher, Alva (premiada com o Nobel da Paz em 1982 por seus esforços desarmamentistas), ajudou a desenhar o Estado de bem-estar social que faz do país um exemplo de riqueza e igualdade e de equilíbrio entre estímulos de competição (típica do capitalismo) e cooperação, que precisou ser politicamente construída.
Teve que defendê-lo de toda a sorte de críticas, desde um argumento convencional de que o aumento dos salários e a diminuição dos lucros em relação ao PIB reduziriam o investimento e o crescimento industrial, o que é desmentido pela rápida recuperação sueca nos anos 1930 e pela força em geral de seu capitalismo, até a tese de que a Suécia teria a maior taxa de suicídio do mundo em razão da segurança material de sua população. A resistência ideológica a uma sociedade mais igualitária é capaz de trilhar caminhos tortuosos...
Em 1944, lançou o livro "Um Dilema Americano: Problema Racial e Democracia Moderna", que dez anos depois foi citado na histórica decisão da Suprema Corte americana sobre a inconstitucionalidade da separação racial nas escolas públicas.
Myrdal admirava os EUA e acreditava que seus ideais de fundação superariam a discriminação em pouco tempo. Para tanto, reduzir a desigualdade era crucial.
Um pouco antes de morrer, em 1987, no fim da era Reagan, admitiu-se um tanto desesperançoso acerca do sucesso de sua previsão. Porém tal erro fala mais da dificuldade de sua luta do que de uma deficiência constitutiva de sua aposta.
No fim dos anos 1950, centrou preocupações na pobreza no Terceiro Mundo, em especial na Indochina, defendendo a tese de que há uma causalidade mútua na qual a deficiência educacional e a estrutura social pioram a pobreza e vice-versa. Reforma agrária e redução das desigualdades de renda eram pré-requisitos para erradicar o problema.
Acusado de "burguês reformista" pela esquerda socialista, Myrdal trabalhou na ONU (1947-57) tentando melhorar as relações entre leste e oeste na Europa.
Hoje, é um herói da esquerda (democrática e capitalista) que anda esquecido. Recordá-lo é um bálsamo.


Texto de Marcelo Miterhof na Folha de São Paulo

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