terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Os cariocas foram à guerra

Foi quando começaram a ser afundados os navios do Lóide Nacional. A crença pública admitiu que tais afundamentos só podiam ser atribuídos a navios nazistas. As carcaças foram promovidas a "vasos", os brios foram despertados e, na impossibilidade de despertar o gigante adormecido, despertaram o Presidente da República para a declaração de guerra.
Nos primeiros momentos, a população queria partir. Matar um alemão era a ambição de todos, trazer na ponta da baioneta um gringo.
Os jornais que incentivaram a declaração de guerra passaram a lembrar que o país era "essencialmente agrário". Impossibilitada de partir para a Europa, a população deu vazão ao amor pátrio, depredando a mercearia "Ao Belo Danúbio". Vi um grupo de patriotas desativados arrastando comprida fiada de chouriços vienenses.
Mas nem todos podiam roubar chouriços. Encontraram forma prudente de saciar os brios desencadeados. As nações aliadas lutavam contra a falta de matéria-prima para as armas, tanques e navios. Era preciso ferro, muito ferro. Revolvidas as entranhas da terra, era pouco o ferro. Foi quando surgiu a ideia: dar ferro aos exércitos aliados. Qualquer coisa servia: ferramenta velha, fechadura quebrada, bicicleta irrecuperável. Até prego. E corrente de cachorro.
Do nada foram erguidas montanhas de cangalha imprestável, lixo que um jornal chamou de "pirâmides"--cada bairro tinha uma.
Poetas fizeram sonetos alexandrinos louvando as pirâmides. O próprio Cardeal contribuiu com castiçal de ferro que pertencera, segundo laudo do Instituto Histórico, à frota cabralina. E nova onda de sonetos, louvando o Cardeal e Pedro Álvares Cabral. A maior parte da população, não podendo contribuir com sonetos alexandrinos nem castiçais cabralinos, fez o que pôde. E foi um nunca acabar de penicos e escarradeiras.


Texto de Carlos Heitor Cony, na Folha de São Paulo

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