domingo, 16 de fevereiro de 2014

Até os críticos russos torcem nas Olimpíadas


Se alguém tem o direito de ser contra as Olimpíadas de Sochi é Andrei Martynov, cuja casa foi desapropriada pelas autoridades russas e demolida sem indenização para liberar terreno perto da arena de hóquei onde a Rússia jogou contra a Eslovênia na quinta-feira (13).
Hoje Martynov vive em um feio abrigo para as pessoas desalojadas pela reconstrução que transformou Sochi, e continua irritado por ter perdido sua casa. Mas, longe de cultivar a amargura, ele manifesta uma emoção que se espalhou, talvez de modo inesperado, por toda a Rússia desde o início dos Jogos de Inverno - um orgulho incontido por seu país.
"Este é um evento único, de interesse mundial, e está acontecendo em minha cidade", disse ele na cozinha comunitária do abrigo, não muito distante do Parque Olímpico, onde o chá era servido em uma mesa de madeira áspera e uma televisão com uma tela perpetuamente amarela estava ligada, apesar de tudo, nas Olimpíadas.
Os preparativos em Sochi foram tão cercados de controvérsia por causa dos gastos excessivos, do mal planejamento e de acusações de corrupção, abusos laborais e calamidades ecológicas, que para muitos russos os jogos pareciam condenados ao fracasso. A generosidade do presidente Vladimir Putin com os fundos estatais para reformar esse resort subtropical para abrigar os Jogos Olímpicos pareceu para muitos personificar seu estilo cada vez mais autocrático, fora de sintonia com as dificuldades cotidianas da maioria dos russos.
Em vez disso, a elaborada cerimônia de abertura e a primeira semana de eventos - incluindo a primeira medalha de ouro do país, na patinação artística por equipes - derreteram algumas das críticas mais severas. Os russos acostumados a tumultos e ao caos, sucessos e fracassos econômicos e a guerra que fervilha no Cáucaso desde o colapso da União Soviética aproveitaram algo para comemorar.
"Talvez seja a poeira no meu olho, talvez seja outra coisa", escreveu o blogueiro Ilya Romashkin em um poema publicado no site blogsochi.ru, que fez uma crônica minuciosamente detalhada dos inúmeros problemas de construção e corrupção que a cidade sofreu desde que foi escolhida para sediar os Jogos, há quase sete anos. "Mas as lágrimas claramente não são de dor, talvez eu esteja orgulhoso de meu país."
Ainda há diversas questões relativas aos jogos, incluindo novas queixas sobre o projeto de algumas instalações e preocupações sobre o clima ameno, mesmo nas montanhas. Depois há o constante debate sobre os gastos, estimados em US$ 50 bilhões, os mais elevados da história e mais que todos os 21 Jogos de Inverno anteriores combinados, em um momento em que estradas ruins, mau atendimento à saúde, a praga da corrupção e uma economia em desaceleração são realidades que a maioria dos russos enfrenta.
Por enquanto, porém, o foco da atenção mudou para os esportes em si, como Putin e seus principais assessores insistiram o tempo todo que deveria ser.
Em Sochi e outras cidades onde as autoridades ergueram telões para os que não têm ingressos, a mudança de humor nos últimos dias foi palpável. Era praticamente impossível encontrar alguém que não manifestasse um entusiasmo renovado pelos esportes de inverno e, é claro, pelos atletas russos, salientando como os Jogos Olímpicos em qualquer lugar podem despertar profundas reservas de patriotismo.
"Quando nossos campeões estão no gelo, nós demonstramos que os amamos, os apoiamos", disse a esposa de Martynov, que pretende assistir à patinação em equipe na televisão do abrigo.
Em toda a Rússia os eventos foram transmitidos pela televisão estatal, que se concentrou muito menos que os críticos e os jornalistas estrangeiros nos problemas que perturbaram a escalada para os jogos. Essa visão positiva, embora limitada, é o que a maioria avassaladora dos russos terá dos Jogos Olímpicos.
Assim como com a comemoração abrangente e analgésica da história da Rússia e da cultura russas na cerimônia de abertura - deixando de lado momentos mais sombrios como o Terror Vermelho, o Gulag e até o colapso soviético - parece ter conquistado até alguns dos críticos mais acirrados do Kremlin.
"Ainda mais que a abertura em si, eu gosto que todo mundo neste site está escrevendo 'Que abertura bacana!'", o blogueiros anticorrupção Alexei A. Navalny escreveu no Twitter. (A organização de Navalny publicou recentemente um amplo site interativo dedicado a documentar o excesso de gastos, a corrupção e o protecionismo nos Jogos Olímpicos, embora comemorasse o evento em si.)
"É tão doce e tão unificador."
Resta ver qual será o legado duradouro de Sochi, é claro, mas a recepção calorosa às Olimpíadas até agora repercutiu politicamente a favor de Putin, cujo envolvimento pessoal nos preparativos para os jogos foi possivelmente maior que o de qualquer outro líder político em décadas.
A medida ampla disso ainda tem de ser contada, mas Stepan Lvov, um diretor da agência de pesquisas russa Vtsiom, disse que seus estudos iniciais mostram uma recuperação nos índices de aprovação pessoal de Putin desde o último fim de semana. "Esse tipo de dinâmica acontece muito raramente", disse ele. (Os resultados da última pesquisa serão publicados depois dos jogos.)
E acrescentou: "Olhando para o site e as redes de mídia social, podemos ver que a quantidade de expressões negativas diminuiu significativamente desde o início dos jogos".
Isso por si só enfureceu alguns críticos de Putin.
Depois que a Rússia venceu a medalha de ouro na patinação artística em equipe, liderada pela incrível performance de Yulia Lipnitskaya, uma jovem estrela de 15 anos, Viktor Shenderovich, um humorista e comentarista de oposição, comparou a comemoração patriótica que se seguiu à dos atletas alemães nas Olimpíadas de 1936 em Berlim. Ele advertiu que o fervor patriótico reforçaria as políticas autoritárias de Putin, provocando uma reação furiosa.
Um dos mais famosos escritores do país, Grigory Chkhartishvili, que usa o pseudônimo de Boris Akunin, respondeu à avalanche de críticas antes dos jogos com um pedido de trégua do "masoquismo no Facebook" de queixas sobre os preparativos, que incluíram quartos de hotel acabados às pressas, água da torneira poluída e o destino dos cães de rua de Sochi.
Ele notou que não é um grande fã de esportes, mas que suas esperanças para Sochi eram simples: sem ataques terroristas, belos esportes, recordes e um evento que "não seja uma desgraça nacional".
Referindo-se aos adversários de Putin, Chkhartishvili escreveu no Facebook: "Juro por Deus que não estou preparado para viver segundo o princípio de 'Se é ruim para Putin, é bom para nós'".
O custo dos jogos, financiados amplamente pelos cofres do Estado, em última instância vão afetar o contribuinte russo, especialmente enquanto as autoridades buscam apertar os gastos para enfrentar receitas em declínio. Mas a maior parte da carga direta foi suportada pelos moradores de Sochi.
Nos últimos sete anos a cidade foi um canteiro de obras, ainda inacabadas, que causou incontáveis atrasos e interrupções para seus 340 mil habitantes. A raiva fervilhante agora se transformou em perdão. "Quando você reforma sua casa, é desconfortável", disse Alla Guseva, uma curadora do museu histórico de Sochi, "mas quando termina você fica feliz por ter feito. Sim, foi desagradável, mas graças a Deus agora terminou."
Os Martynov perderam sua casa em uma aldeia rural no distrito de Adler, onde pássaros migratórios costumavam se reproduzir. Sua casa ficava em um terreno espaçoso perto de um pomar de tangerinas. Palmeiras e eucaliptos sombreavam a aldeia. A praia de seixos do mar Negro ficava a poucos metros de distância.
Embora as autoridades locais e federais tenham dito que todos os desalojados receberão indenização, Andrei Martynov disse que eles não receberam porque as autoridades encontraram irregularidades em seu documento de propriedade. "Aos nossos olhos, a escavadeira entrou em nossa propriedade e destruiu nossa casa", disse. "Imagine isso, ver sua casa ser destruída na sua frente."
Martynov, 55, é fã de hóquei desde jovem. Ele jogou na adolescência com talento suficiente para entrar em uma competição nacional chamada Disco de Ouro antes de ser afastado por uma lesão no joelho, cuja cicatriz ele mostra. Durante toda a vida ele disse que amou o hóquei, enquanto o esporte só lhe deu problemas - agora demolindo sua casa para abrir caminho para as duas arenas onde serão realizadas as competições olímpicas.
Então como pode tolerar assistir às partidas nesse lugar? Como não poderia?, ele respondeu.
"É um acontecimento único na vida", disse ele sobre a equipe nacional russa, cujas perspectivas de medalha de ouro são quase uma obsessão nacional. "Quando a equipe russa patina, eu torço. Não tenho outra equipe, e para quem mais iria torcer? Vou torcer pela Rússia."

Reportagem de Andrew E. Kramer e Steven Lee Myers, para o The New York Times, reproduzida no UOL. Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

Nenhum comentário:

Postar um comentário