terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

População se indigna com repressão da polícia saudita

Em um incidente que repercutiu por toda a Arábia Saudita, dois irmãos, Saud e Nasser al-Qaws, 22 e 24 anos de idade, morreram no ano passado após o carro deles ter sido forçado a sair de uma ponte de Riad por membros da polícia religiosa da Arábia Saudita. Os policiais, membros da Comissão para a Promoção da Virtude e Prevenção do Vício, supostamente fizeram objeção às canções patrióticas que os irmãos ouviam no carro. Eles perseguiram os jovens em alta velocidade, abalroando o carro deles três vezes antes de jogá-los para fora da ponte. Um dos jovens morreu imediatamente; o irmão dele morreu pouco depois.

Um vídeo do incidente, que foi registrado por um transeunte em seu celular em setembro e postado online, causou indignação pública. Tentando atenuar a repercussão, Sheikh Abdul Latif bin Abdul Aziz al-Sheikh, chefe da polícia religiosa, saiu em uma ofensiva de relações públicas. "A verdade é que a perseguição ocorreu", ele disse à TV "Al Arabiya". Ele condenou o incidente e disse que uma investigação está em andamento.

Há muito considerado um dos assuntos tabu do país (assim como críticas ao rei Abdullah), a comissão, também conhecida como mutaween, é agora uma das questões mais controversas da Arábia Saudita.
Nomeado ao comando da força em 2012, Sheikh agora se vê enfrentando tanto ataques públicos contundentes quanto a piora do conflito interno.          
O governo, por sua vez, teme que uma repressão aos mutaween possa incitar uma reação conservadora, de modo que está caminhando por uma linha tênue entre a polícia religiosa e uma população cada vez mais furiosa. Apesar do desmonte da força não ser realista, este momento delicado abre uma janela de oportunidade para os sauditas. Ao continuar expressando sua fúria e desaprovação, o público pode fornecer a Riad a força que precisa para exigir que a polícia cumpra as regulações já existentes, enfraquecendo lentamente a influência da comissão.

A comissão foi formada em 1940 para fiscalizar a implantação da Shariah, a lei islâmica. Ela começou a ganhar proeminência em 1979, depois que fanáticos religiosos tomaram a Grande Mesquita de Meca, condenaram a família real e pediram por uma nova liderança. Após o cerco sangrento de duas semanas, os clérigos sauditas receberam fundos abundantes e liberdade para regular a moralidade.

Hoje, cerca de 4.000 mil mutaween patrulham as ruas, fiscalizando os códigos de vestuário, a separação rígida de homens e mulheres, a realização das orações diárias e outros comportamentos que considera dentro da intenção do Islã. As mulheres, por exemplo, são proibidas de dirigir.

Apesar da força ter sido inicialmente abraçada pelos sauditas, que ainda são predominantemente religiosos e conservadores, uma série de incidentes tem azedado a postura da população em relação a ela. Em 2002 em Meca, 15 meninas morreram em um incêndio em uma escola, impedidas de fugir pelos mutaween, que alegavam que as estudantes não estavam apropriadamente cobertas. Em 2007, uma dúzia de mutaween entrou na casa de uma família em Riad e espancou até a morte um homem saudita de 28 anos, que suspeitavam que possuía álcool ilegalmente. As acusações foram posteriormente abandonadas, mas o processo ajudou a abrir as portas para as críticas, inclusive por parte da imprensa.
Hoje, a opinião saudita a respeito da comissão se encontra no ponto mais baixo de todos os tempos. O ressentimento cresceu no ano passado, quando o rei Abdullah aumentou o orçamento da força para US$ 390 milhões. A disseminação de smartphones facilita a divulgação de evidência dos excessos da polícia, e agora está mais difícil para a comissão varrer as acusações para baixo do tapete. Apesar disso, o fato de a maioria dos casos impetrados contra a comissão ainda terminar em absolvição ou retirada das acusações contribui pouco para fazer com que os sauditas demonstrem apreço pela polícia.

Agora, as divisões internas também parecem crescer. Sheikh é cada vez mais atacado pelos membros mais conservadores da força como sendo liberal e ocidentalizado demais.

Pouco depois de tomar posse em 2012, Sheikh promoveu uma série de reformas visando colocar na linha os mutaween. Voluntários deixaram de poder acompanhar os mutaween em patrulhas; o confisco de telefones e outros pertences pessoais foi proibido; oficinas foram criadas para ensinar os mutaween a lidar com o público; a polícia agora não pode mais receber fundos de empresas privadas. A principal das reformas de Sheikh foi a proibição de perseguições de carro –mas o incidente de setembro passado deixou dolorosamente claro que suas ordens foram ignoradas.
Em uma entrevista controversa em outubro para o "Rotana", um canal de TV saudita, Sheikh reconheceu que um de seus principais confidentes gravou as conversas entre eles para uso contra ele. A entrevista apareceu pouco depois de relatos virem à tona na imprensa de uma tentativa de assassinato contra Sheikh, supostamente ordenada pela Irmandade Muçulmana.
Sheikh pode não ter conseguido refrear os mutaween, mas há sinais de que as redes sociais podem ajudar a conter o regime repressivo da comissão. Os sauditas impediram várias tentativas de restringir o uso de telefones e Internet ao longo dos anos, incluindo uma proibição de 2004 a telefones com câmera (ainda proibidos em áreas reservadas apenas para mulheres). O uso atual de smartphones no país é o terceiro maior do mundo. Apesar das regulações rígidas às atividades na Internet, os sauditas estão entre os maiores usuários do Twitter no mundo árabe; 4,9 milhões de sauditas estavam no Facebook até o início de 2012.

Em outubro passado, uma mulher em Qassim, considerada a região mais conservadora da Arábia Saudita, atacou um membro da polícia religiosa que exigia que ela cobrisse todo seu rosto (ela estava usando um véu que deixava seus olhos expostos). "Não me provoque!" respondeu a mulher. "Você acha que desconhecemos nossa própria religião? Nós conhecemos nossa religião e nos cobrimos desde antes que você existisse. A cobertura facial completa não é forçada a uma mulher!" Um vídeo de 42 segundos da resposta dela bombou nas redes sociais sauditas. Usando o hashtag #Don'tProvoke (não provoque), as pessoas tuitaram mensagens de apoio, criticando o policial por repreender uma mulher vestida de modo modesto, e por fazê-lo em frente dos filhos dela. A reação popular foi uma raridade em um país onde, quando se trata de confrontos entre homens e mulheres, geralmente é aceito que a mulher é a culpada.

A resposta dela acentuou a percepção de que a comissão é um órgão intrusivo que busca impor uma visão estreita da religião às mulheres sauditas. Igualmente digno de nota foi a rejeição dela da definição do policial do que seria um véu apropriado. Após anos invocando os ensinamentos de uma única autoridade religiosa, os sites e redes sociais que os mutaween lutaram tanto para reprimir facilitam a disseminação de posições alternativas.

Uma força policial de quase 75 anos não pode ser desempoderada da noite para o dia, e pessoas como Sheikh, que tentam liberalizá-la, correm o risco de fomentar uma reação perigosa. Mas, com o auxílio das redes sociais, as fundações doutrinárias do establishment religioso estão finalmente começando a rachar. Uma ampla demonstração popular contra os mutaween pode ser o que o governo precisa para finalmente enfraquecer, e talvez futuramente desmontar, a polícia religiosa.



 
Texto de Manal al-Sharif para o The New York Times, reproduzido no UOL. Tradutor: George El Khouri Andolfato
*Manal al-Sharif,  defensora dos direitos da mulher na Arábia Saudita, iniciou uma campanha em 2011 para permitir que as mulheres sauditas dirijam.

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