Adrienne Lecouvreur, tida como a maior atriz de seu tempo, morreu em 1730, aos 38 anos, em Paris. Lecouvreur passou mal enquanto interpretava Jocasta e faleceu logo após a apresentação. Boatos de envenenamento circularam na cidade-luz.
A moral não permitia o casamento na igreja e nem o enterro de comediantes no solo sagrado do cemitério. Para ser digno de receber os sacramentos, era preciso renegar a profissão.
Diante da recusa de maldizer sua vida em cena, o padre a ameaçou com o inferno. Lecouvreur preferiu a companhia de Satanás e foi enterrada numa quebrada do Sena, onde hoje se encontra o Champ de Mars.
Cinquenta e sete anos antes da diva, Molière conquistou seus sete palmos de terra santa graças à intervenção de Luís 14 junto ao arcebispo de Paris. Mas o gênio, ator e dramaturgo francês foi sepultado à noite e no espaço reservado às crianças pagãs e aos suicidas.
O teatro sempre foi marginal.
Minha mãe, que no início da carreira portou carteirinha de prostituta para poder circular à noite, deu uma aula inaugural para jovens atores da CAL (Casa das Artes de Laranjeiras), no fim dos anos 1980. Destaco um trecho.
"Foi e é mais fácil para a história, para a cultura oficial, colocar sempre o autor como espinha dorsal do fenômeno teatral. Sem a figura digna do autor --mesmo os denominados malditos-- não seria possível narrar com segurança a grandeza do teatro. Embora se diga sempre, e através dos tempos, que sem o ator, não há teatro."
"É que um fato é a literatura dramática, e outro fenômeno, ou mistério mesmo, é a mutação que se processa quando o ator vivencia em si mesmo o verbo."
"O ator, e unicamente o ator, é o começo e o fim da arte teatral. Somos provedores."
Provedores. É uma distinção importante.
Quando escrever se tornou uma possibilidade para mim, ouvi de alguém, como se fosse uma grande notícia, que eu estava deixando de fazer parte do mundo dos que só decoram.
A afirmação demonstra a falta de conhecimento do ofício do ator. Decorar não é um ato mecânico, é uma ciência. A ciência da consciência. A procura da voz. A mesma que busca o escritor.
Depois de uma sabatina que realizei no dia 9 de maio para a Folha, no Masp, recebi alguns pedidos de entrevista para que eu falasse sobre o fim da minha carreira de atriz. O resumo do encontro deixou a impressão de que eu estaria me despedindo da ribalta para me dedicar às letras.
Não estou. Assim como Lecouvreur, não tenho como negar minha origem. Faço teatro quando escrevo, faço teatro quando filmo, quando acordo, faço teatro mesmo quando não faço teatro. Ele é a base de tudo que sou desde a infância.
As dez horas de trabalho físico e intelectual em um estúdio de TV, a rotina da temporada de uma peça e os longos dias de filmagem exigem disciplina atlética de quem os enfrenta.
Escrever é menos exposto, mais solitário e mental. Mas é em cena, com outros atores e lidando com autores diversos, que fomento o que está em volta.
Volto à aula.
"Na verdade, nenhuma atuação teatral viva pode ser arquivada, gravada ou exposta, como, por exemplo, um texto de Ésquilo, uma partitura de Beethoven ou um quadro de Da Vinci."
"Nossa caminhada pelos séculos se fez através de uma trajetória subliminar, subterrânea e, até mesmo, subversiva. Um ator, que viu um ator, que trabalhou com um ator, que foi discípulo de um ator."
O teatro só existe naquele instante. É impossível replicá-lo. Essa incapacidade o coloca a reboque das artes nobres e arquiváveis. Sobretudo na ordem econômica atual, voltada para a vastidão de internautas ávidos pelo milagre da multiplicação de bytes.
Trata-se de uma missa de corpo presente, baseada na observação íntima e recíproca. Uma invenção que nasceu na pré-história, junto com o arado e a roda.
Dela, se originaram inúmeras formas de expressão ligadas à dialética, à gramática, à aritmética e à música; à matéria e ao espírito.
Talvez por ser uma debutante tardia na literatura, eu tenha tratado minha vocação de atriz com menos atenção do que deveria. Volto atrás. O teatro é um estigma, é como pertencer a uma raça, ou ser dotado de uma estranha anomalia.
Texto de Fernanda Torres, publicado na Folha de São Paulo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário