Houve um momento em que Angela Merkel se comprometeu a investigar a extensão da espionagem da NSA na Alemanha. Agora, porém, a chanceler mudou totalmente de opinião. A união transatlântica é sua nova prioridade, e a investigação sobre a NSA foi deixada de lado.
No mundo da diplomacia, os momentos de franqueza são raros e costumam ficar obscurecidos por trás de um véu de cordialidade e gestos amáveis. Não foi diferente na última sexta-feira (2), durante a reunião entre o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, e a chanceler alemã, Angela Merkel, em Washington.
Obama saudou Merkel chamando-a de "uma de minhas parceiras mais próximas" e de "amiga", e a conduziu por um passeio pela horta da Casa Branca, como parte das quatro horas que disponibilizou à líder alemã. Ele também elogiou Merkel ao dizer que ela tem sido uma "boa parceira" durante a crise da Ucrânia e agradeceu muitas vezes a chanceler pela estreita cooperação exibida nos últimos anos. Os pássaros que estavam no Jardim das Rosas da Casa Branca cantaram alegremente enquanto o presidente falava.
Mas, em seguida, Obama deixou claro quem tem a força nessa relação maravilhosamente harmoniosa. Quando um repórter perguntou por que, na esteira do escândalo de espionagem da NSA, o acordo de não espionagem entre a Alemanha e os EUA sucumbiu, Obama evitou dar uma resposta clara. Ele também se esquivou de uma pergunta sobre se a equipe de Merkel ainda é monitorada. Em vez disso, ele se mostrou vago: "na posição de mais antiga democracia constitucional contínua do mundo, acho que nós sabemos um pouco sobre a tentativa de proteger a privacidade das pessoas". E ponto final.
Merkel, quando questionada sobre se a confiança tinha sido reconstruída após as revelações relacionadas à NSA, se mostrou muito menos otimista. "É preciso que nós realizemos mais do apenas negociações de rotina – e nós realizaremos", disse ela.
Se aceitar a derrota com um sorriso no rosto faz parte do teatro político, então Angela Merkel teve um desempenho primoroso. Recentemente, em janeiro passado, ela fez um discurso com palavras duras ao parlamento alemão sobre as táticas usadas pelos órgãos de inteligência dos EUA. "Uma abordagem na qual os fins justificam os meios –e que emprega todas as ferramentas técnicas disponíveis – viola a confiança. Essa abordagem semeia a desconfiança". E Merkel acrescentou: "eu estou convencida de que amigos e aliados também deveriam ser capazes e estar dispostos a cooperar quando se trata da defesa contra ameaças externas".
Cooperação? Quando Merkel partiu para os EUA, na quinta-feira passada, ninguém tinha lhe prometido nada – nem mesmo em relação ao tratado de não espionagem, um acordo que os EUA tinham proposto inicialmente em resposta à indignação alemã sobre as revelações de que a NSA coletou uma grande quantidade de dados de telecomunicação na Alemanha e monitorou o celular da chanceler Merkel. Caso Merkel tivesse aderido à prática comum entre os políticos mais proeminentes, que manda evitar viagens ao exterior quando não se espera nenhum resultado concreto, ela teria ficado em Berlim.
A relação entre Berlim e Washington
Mas há um tipo de relação especial entre Berlim e Washington no momento --especial no sentido de que a chanceler quer fazer de tudo para evitar um conflito com os EUA. E ela tinha todos os motivos do mundo para ficar longe da polidez diplomática. Afinal de contas, o próprio celular de Merkel foi alvo da NSA. Mas, em vez disso, ela trouxe um presente valioso para Obama: a promessa de que o denunciante Edward Snowden não irá para a Alemanha para prestar depoimento no inquérito parlamentar sobre as práticas de espionagem da NSA que está em curso.
Merkel ainda fica agitada ao falar sobre a espionagem norte-americana – mas apenas quando as câmeras estão desligadas. No Jardim das Rosas, na semana passada, ela se mostrou tão vaga quanto Obama, preferindo falar de "diferenças de opinião". Mas não haverá consequências imediatas.
A razão não é difícil de identificar: a crise na Ucrânia. Como a situação na região continua piorando, Merkel está ansiosa por demonstrar união com Obama, e os dois ameaçaram a Rússia com novas sanções econômicas. Mas a solidariedade tem um preço: Merkel teve de se afastar de algumas de suas próprias convicções.
Pouco antes de Merkel partir para Washington, seu governo em Berlim tomou medidas que tornarão o trabalho da comissão de investigação sobre a NSA no parlamento muito mais difícil. Isso porque foi apenas em março passado que os conservadores de Merkel, em conjunto com seus parceiros de coalizão socialdemocratas, de centro-esquerda, se comprometeram a investigar ao máximo as práticas da NSA na Alemanha. Mas agora, pouco mais de um mês depois, os nobres objetivos da investigação foram reformulados – e drasticamente reduzidos.
Isso ficou evidente na semana passada, quando o governo de Merkel revelou à comissão de investigação o que pensa sobre o plano original de interrogar Edward Snowden na Alemanha: ou seja, não muita coisa. Em um relatório de 30 páginas, o governo enfatizou a "importância fundamental" da relação transatlântica com os EUA "para a política externa e as questões de segurança". O desejo de fazer Snowden depor na Alemanha teve que ser colocado de lado.
Desautorizando o Bundestag
Essa desistência também pegou os especialistas em política interna e os juristas do próprio partido de Merkel de surpresa. Anteriormente, as discussões se concentravam na questão legal sobre se a Alemanha seria obrigada a extraditar Snowden para os EUA caso ele fosse a Berlim para prestar seu testemunho.
Mas esse debate agora é coisa do passado. O governo de Merkel, reclama Konstantin von Notz, representante sênior na comissão do Partido Verde, de oposição, priorizou os interesses relacionados à política externa e à cooperação na área de inteligência em detrimento dos interesses do próprio parlamento da Alemanha. "É uma tentativa de enfraquecer o Bundestag", disse ele. Se a maioria dos membros da comissão compartilhar a opinião de von Notz quando eles se reunirem na próxima quinta-feira, acrescentou o representante dos verdes, a comissão não terá outra escolha senão confrontar o governo alemão no Tribunal Constitucional Federal, a mais alta instância judicial da Alemanha.
Do jeito que as coisas estão, o depoimento de Snowden provavelmente não será a única questão que o tribunal terá que resolver. Internamente, o governo de Merkel concordou em fornecer à comissão parlamentar de inquérito apenas acesso limitado a seus arquivos relacionados à NSA. As informações sobre as negociações do acordo de não espionagem, por exemplo, não serão disponibilizadas aos parlamentares. Segundo um alto representante do governo alemão disse à Spiegel, devido ao fato de as negociações sobre o acordo estarem em curso, não será possível repassar nenhuma informação sobre ele. Além disso, acrescentou esse representante, a questão toca em "uma área central relacionada ao privilégio dos membros do executivo*", que é protegido pela constituição. (Nota da tradutora: privilégio executivo é o princípio segundo o qual o presidente da república ou outro membro do executivo não precisa revelar informações sigilosas para terceiros.)
A investigação parlamentar representa uma ameaça direta às atividades dos serviços secretos da Alemanha e dos estrategistas da área de segurança da chancelaria. Tanto as agências de inteligência estrangeiras quanto as alemãs mantêm uma "cooperação estreita e digna de confiança" com a NSA e sua congênere britânica, a GCHQ, de acordo com um documento sigiloso do governo alemão. Informações também são trocadas regularmente com o FBI, a CIA, o Departamento de Segurança Interna dos EUA, o MI5 britânico e com várias outras agências de inteligência britânicas e norte-americanas. A cooperação tornou-se ainda maior nos últimos anos e é essencial para a Alemanha quando se trata de combater os perigos representados pelo terrorismo islâmico. Mas existe a preocupação de que uma investigação parlamentar agressiva possa prejudicar essa cooperação estreita.
"Nós temos medo que todos os nossos segredos comerciais sejam expostos pela comissão", disse uma autoridade do setor de inteligência da Alemanha. Para impedir que isso ocorra, o governo de Merkel começou erigir obstáculos. A chamada "regra da terceira parte", por exemplo, está sendo aplicada. Essa a regra estabelece que, antes que uma informação obtida por uma agência de inteligência estrangeira possa ser repassada, primeiro essa agência precisa conceder sua permissão. A regra, é claro, se aplica tanto à NSA quanto à GCHQ – o que significa que as agências suspeitas de terem cometido espionagem em larga escala na Alemanha têm uma influência significativa sobre a comissão encarregada de investigar essa espionagem.
"Sabotagem"
Os políticos oposicionistas do Partido de Esquerda, de extrema-esquerda, e do Partido Verde vem falando sobre "sabotagem". Eles também ficaram perplexos quando souberam, na semana passada, que o governo baseou sua posição, em parte, nas orientações jurídicas fornecidas por um escritório de advocacia norte-americano.
Essas orientações foram fornecidas pelo escritório Rubin, Winston, Diercks, Harris & Cooke, sediado em Washington, e essencialmente significam que qualquer pessoa que tenha qualquer coisa a ver com Snowden, até mesmo jornalistas, é uma criminosa em potencial. "Em nossa opinião, se Snowden fornecer informações ou documentos sigilosos para o Bundestag ou para os diplomatas alemães que entrevistarem Snowden, esses atos farão com que os envolvidos se exponham a uma conduta criminosa, de acordo com as leis dos Estados Unidos. Por esse motivo, os Estados Unidos teriam competência para julgar esses atos independentemente de onde eles tenham ocorrido", escreveu Jeffrey Harris, um dos sócios do escritório de advocacia. Essa é uma interpretação que também se aplica à Spiegel e a outros meios de comunicação que têm tido acesso a e divulgado uma grande quantidade de documentos fornecidos por Snowden.
O documento observa claramente que, nos Estados Unidos, os políticos alemães não gozam dos mesmos direitos de que gozam na Alemanha e que eles também não têm tanta proteção quanto os parlamentares norte-americanos.
O advogado norte-americano de Snowden, Ben Wizner, disse que essa conclusão – de que as autoridades norte-americanas podem tentar responsabilizar criminalmente os políticos alemães – é "mas do que absurda". Além disso, observou ele, Snowden "não se ofereceu para revelar como testemunha novas atividades de monitoramento que ainda não tenham sido divulgadas pelos jornalistas".
Parece incerto atualmente se a comissão de investigação sobre a NSA do parlamento alemão será capaz de cumprir sua missão. E também não parece que outras instituições estejam preparadas para jogar muita luz sobre o assunto. No início deste ano, promotores alemães estavam considerando a abertura de uma investigação criminal sobre o monitoramento do telefone celular de Merkel. Mas esse plano parece ter sido arquivado. De acordo com a explicação fornecida para o arquivamento, uma investigação como essa teria pouca chance de sucesso sem a assistência jurídica dos EUA.
Esse ponto de vista marca uma significativa mudança de opinião. Tanto os políticos de esquerda quanto os de direita da Alemanha tinham esperanças de poderem confrontar os órgãos de inteligência dos EUA, mesmo que apenas simbolicamente. Especialmente para o SPD (Partido Social Democrata), essa era uma questão de credibilidade. Afinal de contas, não faz muito tempo que Peer Steinbrück, então candidato do SPD a chanceler durante as eleições do outono passado, acusou Merkel de ter quebrado seu juramento de posse ao não proteger os alemães contra a espionagem norte-americana. O presidente do partido, Sigmar Gabriel, disse: "eu espero que a chanceler represente a constituição alemã em suas discussões nos EUA, e não os interesses dos serviços de inteligência norte-americanos na Alemanha".
Cão latindo ou pedinte
Mas isso foi antes das eleições gerais de setembro passado – e milênios atrás em termos políticos. Agora, até mesmo Gabriel acredita que ser gentil com os norte-americanos deve ser uma prioridade, e ele parece ter se esquecido de sua posição declarada, segundo a qual um acordo de livre comércio com os EUA só poderá ser concluído se os norte-americanos respeitarem os direitos democráticos dos alemães.
Mas nem todos os socialdemocratas têm uma memória tão ruim assim. "Snowden e outras pessoas continuam sendo testemunhas importantes para a comissão de investigação", disse Rolf Mützenich, vice-líder do SPD no parlamento alemão. Dietmar Nietan, tesoureiro do SPD, concorda que seria um erro minimizar um conflito com os EUA. "Houve um grande distanciamento e nós não deveríamos dourar a pílula", diz ele.
Muitos entre os conservadores de Merkel também acreditam que é imprudente por parte da chanceler se mostrar tão próxima de Obama. Atualmente, vários parlamentares da CDU (União Democrata Cristã) estão em campanha para a eleição ao Parlamento Europeu, que ocorrerá no final deste mês, e muitas vezes eles têm sido questionados sobre por que a Alemanha deveria se mostrar disposta a impor sanções contra a Rússia em resposta à crise Ucrânia se os norte-americanos parecem tão desinteressados em cumprir as leis internacionais.
"Já há algum tempo eu venho notando em minhas aparições públicas que a abordagem crítica dos alemães em relação aos EUA é, infelizmente, maior do que já foi no passado", disse o parlamentar da CDU Wolfgang Bosbach. "Há uma certa decepção com o fato de que Obama tenha mantido, sem nenhuma interrupção, as mesmas políticas da era Bush em relação às questões de segurança nacional".
Merkel, é claro, está ciente desse estado de espírito, mas ela se recusa a ceder a ele. Ela está convencida de que o presidente russo Vladimir Putin só poderá ser controlado se a Europa e os EUA se apoiarem mutuamente durante a crise na Ucrânia – e ela até está preparada para sacrificar a investigação sobre a NSA para alcançar esse objetivo. Isso também significa utilizar dois pesos e duas medidas. Seria pouco eficaz ameaçar Putin com consequências devido à violação de leis internacionais e ignorar as próprias violações cometidas por Obama. Merkel gosta de lembrar que os EUA e a Alemanha pertencem a uma comunidade que segue valores. Mas qual é o valor dessa comunidade quando se constata que o compromisso de Obama com esses valores é guiado pela conveniência?
Antes de sua viagem, na semana passada, Merkel e sua equipe insistiram que era preciso olhar para as coisas de maneira pragmática. Independentemente de quanto Berlim protestasse, os norte-americanos iriam ignorar esses protestos, pois sabem que a Alemanha é dependente deles, afirmaram os assessores de Merkel. "Nós estávamos em algum ponto entre a posição de um pedinte e a de um cão latindo", disse um assessor da chancelaria. Agora, Merkel parece ter escolhido seu papel favorito: o de pedinte.
Texto da Der Spiegel, reproduzido no UOL. Tradutor: Cláudia Gonçalves
Nenhum comentário:
Postar um comentário