quinta-feira, 15 de maio de 2014

A cópia da cópia em Macau


Quando abandono os corredores de mármore do meu hotel-cassino francês, onde um chinês me saúda com "bon soir", encontro sobrados e igrejinhas coloniais com lanternas vermelhas, pedras portuguesas no chão e, ao fim da rua cortada por becos esfumaçados e pensões obscuras, as torres dos cassinos gigantescos flutuando como espaçonaves na chuva --Wynn, MGM, Galaxy, Sands, a maioria deles construída depois que a soberania de Macau foi transferida de Portugal para a China em 1999.
Depois de dobrar esquinas a esmo pela cidade inédita, me perder em salas de jogo do tamanho de quarteirões e deixar US$ 80 no ímpar preto para depois ganhar US$ 40 no vermelho 13, encontro alguns amigos no topo de uma das torres, de onde se tem a dimensão aérea dos monumentos verticais de dinheiro e insensatez. Ainda iremos a outra boate e a um terceiro subsolo com lasers fatiando nuvens de fumaça e imprimindo pontos coloridos nas pernas descobertas e muito brancas das chinesas.
Volto traçando as pernas para o hotel --e não é porque estou bêbado que caminhar pela ex-colônia portuguesa na China é uma experiência desconcertante. Um quarteirão resume séculos de colonialismo e uns poucos e selvagens anos de globalização em arranha-céus de néon emparelhados com sobrados portugueses e ruelas medievais. Cada esquina diz muito sobre a Europa e a China deste século em perpétua inauguração, sobre a passagem do tempo --e, claro, sobre Portugal, essa senhora austera que nos olha de cima, ainda que estejamos no topo da escada.
Mas a principal lição de Macau é sobre o contemporâneo e o simulacro. Aqui, há uma imitação da imitação de Veneza que existe em Las Vegas. Fica no Venezian, que é o maior cassino do mundo e fatura o mesmo que a cidade inteira de Las Vegas leva com o jogo a cada ano.
É a sexta maior construção já feita pelo homem, com 980 mil metros quadrados, 3.000 quartos e não sei quantos canais cheirando a cloro com gondoleiros filipinos cantando "O Sole Mio" sob um céu artificial em perpétuo crepúsculo. A Europa também está em outros cassinos, como o MGM, onde há uma miniLisboa com uma estação do Rossio inteira dentro. E no fajuto cais de pescadores, onde vemos um anfiteatro romano, uma vila mexicana, prédios art déco de Miami e mais uma imitação de Portugal e outra da própria China.
Em quantos séculos ou décadas as pessoas vão parar de conseguir diferenciar essas cópias em estilo Epcot Center dos prédios históricos da cidade? Até que ponto uma igreja em estilo colonial português na Ásia, como a Igreja da Sé, onde entrei e ouvi Roberto Carlos e sua cantilena religiosa pelas caixas de som, é mais autêntica do que qualquer um desses monumentos ao kitsch? Pois chinesa ela não é.
E ainda: dá pra relacionar a sensação que um português recém-chegado a Macau no século 18 tinha ao encontrar o calçamento copiado das ruas de Lisboa com a nossa olhando essas novas cópias no século 21? O que faz da cópia coisa orgânica, autêntica e real? Quanto tempo?
Não sei. Mas responder as perguntas que Macau nos faz o tempo inteiro ajudaria a desatar uma fita de moebius local: como foi que os bares do Rio de Janeiro começaram a parecer com as cópias de bares do Rio de Janeiro encontradas em São Paulo?


Texto de J. P. Cuenca, para o caderno de turismo do jornal Folha de São Paulo

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