terça-feira, 6 de maio de 2014

Lugar proibido


É um aglomerado comum diante da morte. Não preciso firmar a vista e ver o cadáver do menino, que me parece enrijecido e denso, pousado sobre o asfalto cheio de sol e de cheiros do mundo. Não sou chegado a piedades nem aprecio defuntos. Mas, talvez misto de curiosidade e ira, alguma coisa me chama, motivo para amaldiçoar o dia que nasce para todos e se estraga.
Estaciono o carro em cima da calçada e o guarda que me vê fazer a manobra ilegal não me dá bronca. Nem usa o apito regulamentar ou para me ameaçar com a multa também regulamentar. Diante da morte, qualquer bronca ou multa são inúteis, por isso trocamos um olhar de cumplicidade e revolta.
Volto para o carro sem qualquer remorso e sem cólera de ter ido ver o menino. Achando até natural que o garoto tivesse morrido, ali no asfalto, e que os ralos, onde começam os esgotos do mundo, lhe bebessem o sangue não corrompido pelo viver de muitos dias e pelo presenciar de muitas mortes.
De alguma forma, o menino anônimo e imóvel, abraçando o asfalto, cumpriu sua missão de menino, sem nenhum adulto escuro e desiludido a substituí-lo pela vida afora.
E sinto, de repente, que em algum lugar, abraçado a algum asfalto --ensolarado ou talvez chuvoso-- jaz o corpinho não profanado de um menino triste que inutilmente tentou chegar a uma calçada, sem merecer o castigo de se prolongar no homem que hoje me tornei.
Impotente e conformado, abre os braços de espanto e pena. Cansado, de alguma forma sente-se eterno, a raiva e o tempo imobilizando seu gesto e seu impossível grito.
Quando chego ao carro, nem reparo que havia um papel retangular colado ao para-brisa: "Estacionamento em lugar proibido".
No fundo, quem merecia receber a multa era o menino morto que não conseguiu chegar na calçada.



Texto de Carlos Heitor Cony, na Folha de São Paulo

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