Na semana passada, os PMs e os bombeiros de Pernambuco entraram em greve, pedindo aumento salarial e benefícios. Será que é certo que a polícia cruze os braços para promover suas reivindicações, por justas que sejam? Não sei, mas o que me interessa hoje é outra questão.
A greve durou apenas três dias e não envolveu a Polícia Civil, que continuou operando de modo normal. Mesmo assim, o "caos" reinou imediatamente. Houve um aumento brutal de assassinatos, roubos, saques e arrastões.
No Recife, as ruas ficaram vazias e as lojas fechadas, enquanto escolas da rede estadual e universidades desistiram dos turnos da noite. No terceiro dia, a Polícia Militar voltou ao trabalho, talvez mais impressionada pela onda de violência do que pela multa imposta às associações da categoria.
Estou convencido de que não há ordem possível sem polícia e sem patrulhamento. Mas sempre pensei assim: se a polícia sumisse das ruas, o caos se instalaria aos poucos.
Imaginava uma progressão lenta: 1) os muros se cobririam de tags, o som de quem acha graça seria cada vez mais alto, aumentaria o número dos que cospem e urinam na calçada, os edifícios vazios se tornariam refúgio para o tráfico de crack, na paisagem urbana se multiplicariam as janelas quebradas e os carros depenados; 2) dessa forma, vingaria em todos nós a sensação de que não há nenhum cuidado com o espaço público: ele se transformou numa terra de ninguém, na qual se trata de medir se os outros nos quais esbarramos são ou não mais fortes do que a gente; 3) no fim, a sociedade se dissolveria, deixando a cada um a tarefa de descobrir se ele consegue matar antes de ser morto.
O tempo necessário para chegar do 1 ao 3 representaria a força e a qualidade de uma sociedade. Não sou especialmente otimista quanto à solidez das sociedades humanas (três semanas para ir de 1 a 3 já me parece de bom tamanho), mas uma sociedade que se dissolvesse em tempo zero, assim que a polícia saísse das ruas, seria uma sociedade de qualidade zero.
Em tese, as regras de convivência não existem só pelo policiamento: a patrulha da PM não é a única razão pela qual não roubo, não assalto, não estupro e não mato. Esses interditos estão também dentro de mim e dentro dos outros cidadãos.
Como é possível que, a polícia abandonando a rua, esses interditos sejam imediatamente silenciados? Será que, no país no qual vivemos, as regras do convívio social são válidas unicamente enquanto dura a presença ostensiva da repressão?
Se assim fosse, o país poderia distribuir passaportes, recolher impostos e até garantir direitos básicos etc., mas, de qualquer forma, sua classe dirigente e sua burocracia administrativa só justificariam sua autoridade por uma violência, implícita ou explícita, ou seja, como se fossem um exército estrangeiro de ocupação. Esse país seria uma zona de conflito onde se enfrentam corporações, grupos e indivíduos, todos sem interesse algum pelo bem comum.
Um país em que a validade das regras de convivência fosse apenas efeito de policiamento ostensivo só existiria como expressão geográfica, porque ele não seria um país no espírito de seus supostos cidadãos. Se esse for o caso do Brasil, seria bom nos resignarmos a tomar as providências que cabem: por exemplo, se a legalidade não é nada sem a força, talvez seja certo aplaudir os que prendem bandidos aos postes e criar grupos de vigilantes.
Enfim, no dia 14 passado, na Folha, o ministro Rebelo encorajou os brasileiros a deixar de protestar contra a Copa, mostrar patriotismo e torcer pela seleção e pelo Brasil. Tudo bem, a seleção, a gente conhece, e podemos torcer por ela --mas o Brasil, será que ele existe?
Se uma sociedade se dissolve em menos de 24 horas porque sua polícia entra em greve, é que essa sociedade mal existia.
O problema da Copa não são as obras atrasadas, nem o que foi eventualmente roubado na sua construção. O fracasso da preparação da Copa não são os estádios, os hotéis e os metrôs inacabados: o fracasso é a sensação de que falta um país pelo qual torcer. É disso que se queixam as massas quando dizem que não querem a Copa.
Nota positiva. Houve famílias em Pernambuco que, na quinta-feira, procuraram devolver o que os filhos tinham roubado nos saques da véspera. Alguns choravam de humilhação. Não deveriam; eles são a razão que nos sobra para ter esperança: eles são nossa seleção.
Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo.
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