De forma respeitosa, mas como sempre implacável, Hélio Schwartsman escreveu sobre os milagres atribuídos a João 23 e João Paulo 2º, na edição deste domingo daFolha.
É complicado, disse ele, envolver comissões de médicos e cientistas nos processos de canonização. Os cientistas têm de atestar que o feito, a cura, os prodígios atribuídos ao candidato a santo "não têm explicação natural".
É aí que o bicho pega, diz o articulista. Uma coisa que hoje não tem explicação científica pode ser explicada amanhã. A ciência progride sempre, e o caráter provisório de suas conclusões não combina com a força, em tese irreversível, de uma decisão papal.
Tendo a concordar com Hélio Schwartsman, mas abro espaço para dificultar um pouco as coisas. A igreja também "progride", ou pelo menos vai mudando, ainda que com grande lentidão.
Até o século 10, diz o "Dicionário Crítico de Teologia" (ed. Paulinas/Loyola), a santidade era declarada muito mais informalmente. Bastava a "aclamação do povo" ou o decreto de um bispo.
"A multiplicação desses cultos levou o papado a intervir", diz o autor do verbete. As regras para canonizar alguém foram sendo formalizadas, e o processo se centralizou.
Sístoles e diástoles: depois de muita rigidez, o Vaticano resolveu "tornar mais ágil" o procedimento para a canonização. Foi iniciativa de João Paulo 2º, em 1983. Talvez por isso já estejamos com três santos brasileiros.
O mais curioso é que, no caso de José de Anchieta, nem milagre específico se pediu. É a "canonização equipolente", que segue três requisitos. Exige-se que exista um culto antigo ao santo, que ele tenha fé e virtudes comprovadas, e que por fim haja uma "fama" contínua de milagres em torno dele. Não se investiga nenhum caso concreto.
Fico feliz assim. Para que escarafunchar tanto o eletrocardiograma de Fulano, o exame de sangue de Beltrana, quando as pessoas querem apenas rezar por um santo? Talvez seja até meio vulgar, no sentido de excessivamente físico e grosseiro, esse interesse "científico" pela santidade.
Quem explora o tema com muita sabedoria é George Bernard Shaw (1856-1950), na sua peça "Santa Joana". Em plena Guerra dos Cem Anos, a donzela de Orléans insistia com os poderosos para ganhar uma armadura e lutar pela expulsão dos ingleses que invadiram seu país.
Enquanto os nobres hesitam, nenhuma galinha bota ovo. Dão-lhe as armas e a permissão; imediatamente surge o bastante para alimentar de omeletes um exército inteiro.
Milagre? Mas o que é um milagre? Um dos personagens da peça, o arcebispo de Reims, toma a palavra. Milagre, diz ele, é um acontecimento que produz fé.
Mesmo se for uma mistificação, uma mágica, um truque? O arcebispo é sutil. "Truques produzem decepções quando descobertos." O verdadeiro milagre, não.
Não existe, nesse raciocínio, um milagre "puramente físico". Se um par de asas nascesse agora nos meus ombros, eu poderia desfilar pela Redação da Folha ou, quem sabe, marcar presença no Dia do Orgulho Gay --e só aumentaria, com isso, a incredulidade geral.
O mundo dos prodígios, em que galinhas deixavam de botar ovo ou criavam dentes, está terminado; sabemos, aliás, que nunca existiu. A questão é que, nos primórdios do cristianismo, tudo era prodígio. Como a ciência não explicava nada, ou pouquíssima coisa, o âmbito do "sobrenatural" tinha uma extensão inimaginável para nós.
Depois de João Paulo 2º e João 23, corre o processo de canonização de Paulo 6º, ajudado por um caso médico que os especialistas não foram capazes de elucidar. A rigor, seguindo Bernard Shaw, não importa se, no futuro, a ciência explicar o que aconteceu.
O silêncio dos cientistas, sua falta de resposta, ajudou na "produção da fé". Nesse sentido, jogo água no moinho de Hélio Schwartsman: a fé sobrevive no vazio da ciência, no silêncio da medicina.
Não sei se a igreja seria tão tola a ponto de esperar o aval dos cientistas para saber se uma coisa é milagre ou não. Quando se fala de cura "milagrosa", imagino que o importante seja evitar os riscos, e o vexame de desmascaramento no dia seguinte.
Num paradoxo, a ciência é quem dá o "nihil obstat", "nada proíbe", à crença no milagre de quem quer que seja. Depois de feito o santo, pode vir o dilúvio; já não importa mais.
De todo modo, a igreja parece estar colocando as burocracias e exigências de lado. Se os milagres produzem fé, não é menos certo dizer que a fé produz santos como nunca.
Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo.
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