Com tantos casos de corrupção no Brasil, não falta quem atribua o
fenômeno aos vícios originais de nossa cultura –como o patrimonialismo
ou a herança católica.
Afirma-se (eu mesmo achei isso durante um tempo) que seria hipócrita
reclamar de políticos desonestos quando estamos, na maior parte do
tempo, dando nossos jeitinhos no Detran ou pagando consulta médica sem
exigir recibo.
Alguns comportamentos cotidianos de fato me parecem chocantes. Faz muito
tempo, mas não me esqueço de um parente que, numa festa de casamento,
meteu algumas notas no bolso de um garçom para garantir uma oferta
ilimitada de drinques e salgadinhos. Ouvi depois que se trata de uma
prática comum.
Menos comum foi o que me contaram de uma freguesa de supermercado.
Adepta de uma modalidade específica do café Melitta –parece que a Sul de
Minas é a melhor de todas–, ela se incomodava com o fato de nunca
encontrá-la nas prateleiras. Sempre havia quem comprasse tudo antes.
A solução foi pagar uma propina para alguém do supermercado, que se
compromete agora a avisar pelo telefone quando a bendita marca chega no
caminhão.
É esperteza e energia demais, a meu ver, para vantagens tão pequenas.
Seja como for, não vejo relação de causalidade direta entre essa
corrupção miúda e o desvio sistemático de verbas públicas.
De minha parte, estou cada vez mais convencido de que a cultura tem
menos importância para a corrupção do que a arquitetura institucional de
cada país.
Os que veem no Brasil a pátria insuperável da pilantragem e do jeitinho
podem se divertir e se surpreender com dois filmes do Extremo Oriente
lançados Neste ano.
"Um Dia Difícil", do sul-coreano Kim Seong-hun, é uma ótima mistura de
comédia e suspense, e pode ser encontrado na internet. O herói da
história é um policial capaz de dar lições ao mais refinado malandro
nacional.
Dirigindo bêbado a caminho do velório de sua mãe, ele atropela uma
pessoa na estrada. Esconde-se dos guardas de trânsito; dá uma carteirada
para evitar o bafômetro; resolve enfiar o defunto no porta-malas do
carro.
A confusão está apenas começando. Como se livrar do cadáver? Lembremos que ele tem outro à disposição, o de sua própria mãe.
O engenho do protagonista só tem rivais na inteligência e na brutalidade
de seu adversário –um superior seu na hierarquia da polícia, altamente
corrupto, com interesse especial em achar o corpo do atropelado.
Violência, improviso, comédia e corrupção fazem de "Um Dia Difícil" a
contestação de qualquer teoria sobre o que o Brasil tem de tão
particular assim nesse tipo de coisas. O filme até brinca com um
conhecido estereótipo –o de que os coreanos são ótimos em matemática.
Bem, mas é a Coreia do Sul, país em que manifestações pela renúncia da
presidente devido a escândalos com dinheiro público se sucedem
semanalmente. O que dizer do Japão?
Sempre tivemos, graças a nosso contato com as primeiras gerações de
imigrantes, a imagem dos japoneses como especialmente confiáveis,
regrados e até inflexíveis. No maravilhoso "Depois da Tempestade", de
Hirokazu Kore-eda (em cartaz em São Paulo), acompanhamos a história de
um escritor fracassado, embrulhão para brasileiro nenhum botar defeito.
Sem ter como para pagar pensão para a ex-mulher, o protagonista arranja
emprego como detetive particular, tirando dinheiro extra como
chantagista, e gastando tudo no jogo. Ele mente o tempo inteiro, remexe
nos guardados da mãe para encontrar algo de valor e dá uma simplíssima e
magistral lição de como conseguir desconto numa loja de artigos
esportivos.
Seria a malandragem em pessoa, não fosse o lindo conflito de consciência
que vive nas relações com o filho pequeno. Nesse campo das relações
entre pai e filho, "Depois da Tempestade" poderia ser visto como uma
espécie de "Ladrões de Bicicleta" contemporâneo, em que o drama operário
filmado por Vittorio de Sica em 1948 é substituído pela ambiguidade
moral de um mundo em que o trabalho começa a desaparecer.
O arranjo, o expediente, o "bico", o "jeitinho" e o trambique serão,
talvez, reflexo de uma situação urbana em que as organizações
trabalhistas clássicas deram lugar à precariedade do cada um por si. Não
espanta que tantos ex-sindicalistas, aliás, tenham sido rápidos nessa
adaptação aos novos tempos.
Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo.
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