Foi com um câmera IP e um protocolo FTP que tudo começou. É o tipo de dispositivo para quem não entende muito de configuração e procura uma ferramenta que cumpra o desejado numa conexão com roteador, eliminando cabos incômodos. Para a instalação basta seguir um tutorial disponível na própria rede. Foi assim que Julian começou.
No início, embaralhou-se com perguntas e respostas deste tipo:
– Eu preciso definir o IP da Cam fora da faixa do DHCP?
Não fica claro sem ele perguntou isso a um especialista ou se apenas leu algo assim quando se preparava para instalar a sua câmera. Julian é um cara tranquilo. Gosta de videogames. Curte bandas como System of a down e passa dias e noites trancado no seu quarto quando não se sente animado para sair. Ou seja, sempre. Na verdade, sair até lhe interessa muito. O problema é esse contato com o exterior, um mundo áspero e ameaçador que o intimida. Julian deveria, com essas características, ser um quase um profissional da rede, mas não é. Não tem persistência nem curiosidade suficientes. A vida tem passado lentamente e Julian a divide em duas etapas: quando teve espinhas e quando se livrou delas. Ou quando parou de ouvir Nirvana. Simples.
Na última vez em que um amigo o visitou, Julian estava com a janela do quarto fechada apesar do dia bonito que fazia. Justificou:
– A minha janela para o mundo é o computador.
– Você vê muita coisa?
– Não.
O amigo ficou esperando que Julian desenvolvesse o raciocínio. Isso não aconteceu. Normalmente as pessoas sentem necessidade de dar explicações sobre o que pensam e não sustentam um silêncio desse tipo por muito tempo. Ficam constrangidas. Sentem-se em dívida. Sofrem com a espera do interlocutor. Julian não é assim. A expectativa alheia não o atinge. Ao menos, para ser claro, não o afeta presencialmente. Pode ser depressão. Pode ser também excesso de lucidez. A última vez em que reuniu amigos – três – para bater papo foi quando completou 40 anos de idade. Os convidados arriscaram meia dúzia de perguntas e, diante das respostas lacônicas, bateram em retirada. A surpresa foi, já na saída, uma frase composta de sujeito, verbo e predicado:
– As praias estão cada vez mais sujas.
Diante do espanto dos amigos, Julian concedeu um murmúrio:
– Bobagem. Falei por falar.
A descrição do quarto de Julian mereceria um capítulo à parte. Numa obra mais alentada certamente não se dispensaria esse detalhamento. É um quarto de 15 metros quadrados. Talvez mais. Talvez menos. Ninguém mediu. Contistas costumam apresentar medidas aproximativas como se fossem exatas. Não se deve confiar totalmente. Paredes brancas. A janela dá para um edifício de paredes sujas. Mesmo assim, uma nesga de sol invade a peça pela manhã. Numa pequena estante de metal, meio enviesados, quase caindo, estão alguns vinis. Um deles é da banda Aerosmith. Há um pôster na parede, um pouco acima da cama. Uma imagem de Eric Clapton. Em certo sentido, nada de mais: um quarto pop. Um cinzeiro acumula baganas de todos os tipos.
Também são identificáveis uns três livros. Dá para ver a lombada de um deles com um título em letras azuis: Neuromancer. É um lugar, como se dizia antigamente, espartano. Tem um armário e uma cama de solteiro. O computador é um laptop que repousa sobre uma dessas mesas de escritório. Na frente da mesa, um banquinho de quatro pernas, desse que eram chamados de mochinhos, contrasta com a modernidade dos equipamentos. A câmera revela a melancolia da peça.
Em outras circunstâncias caberia esclarecer como Julian faz para se sustentar. Aqui, não vem ao caso. São questões, de algum modo, resolvidas na vida dele. É incrível como existem mil formas de sobrevivência, de organização do cotidiano e de passar o tempo. Julian instalou a câmera. Aos poucos, melhorou a tecnologia. O seu quarto pode ser observado integralmente a qualquer hora do dia a partir de qualquer ponto do planeta. Cada gesto que faz está em foco. Todos os seus movimentos estão sob o olho frio da lente. A janela para o mundo permanece aberta 24 horas por dia. Nunca é fechada. Na maior do tempo, a imagem é estática: Julian de barriga para cima na cama. Ele pode ser visto fumando, mexendo nos livros, coçando-se.
Cena rara: Julian rezando. Ele está com as mãos entrelaçadas. Mexe os lábios lentamente. Quantas pessoas fazem como Julian? Quantos se exibem assim na rede? Milhares? Milhões? Faz parte da sociedade do espetáculo esse desejo quase obsceno de mostrar-se mesmo nada tendo a exibir? Certamente. O caso de Julian, porém, é diferente. Por quê? Difícil dizer. Seria preciso conversar um pouco mais com ele para entender. As suas motivações são obscuras, contraditórias, vagas. Julian é exatamente isto: contraditório, obscuro, vago. Enfim, do ponto de vista de quem tenta decifrá-lo um tanto rapidamente. Ele se dá a ver como um animal num zoológico. Um urso triste.
Na sua jaula.
Um contador marca o número de pessoas que já tiveram acesso às imagens permanentemente disponíveis de Julian. Ele confere esse contador a cada hora. Passado um ano e dois meses, um acesso.
O meu.
Reprodução do Blog do Juremir Machado da Silva, no Correio do Povo.
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