sábado, 31 de dezembro de 2016

Há momentos na história em que o riso está do lado do poder

Na década de 1990, um grupo de cineastas dinamarqueses intitulado Dogma foi responsável por alguns dos melhores filmes da época. Eles se propunham a fazer filmes de baixo orçamento, com câmera na mão, parcos recursos de edição e grande sensibilidade para a crítica social.
Um dos mais impressionantes dessa leva se chamava "Festen" ("Festa de Família", em sua versão brasileira), de Thomas Vinterberg. Tratava-se da história de uma festa em homenagem ao 60º aniversário do patriarca de uma família.
Organizada em um castelo, a festa conta com grande número de convivas e atividades. Mas, logo no primeiro discurso, um dos filhos acusa o pai de tê-lo abusado sexualmente e de sua irmã, que se suicidara recentemente. Durante todo o filme, as revelações se seguirão. No entanto, há algo de absolutamente extraordinário: apesar das acusações e do mal-estar, a festa nunca para.
Dessa forma, Vinterberg forneceu uma das melhores figurações do que é uma sociedade autoritária. Pois uma sociedade autoritária não é simplesmente aquela submetida à brutalidade da autoridade patriarcal e de sua exceção soberana que a coloca, ao mesmo tempo, dentro e fora da lei. Há ainda um elemento talvez até mesmo mais aterrador. Uma sociedade autoritária é aquela na qual a festa nunca para.
De fato, não importa a violência que aconteça, as injustiças que se acumulam, as demandas que brutalmente serão silenciadas, a festa nunca pode parar, as brincadeiras deverão continuar, as atividades deverão ser celebradas, mesmo que elas já tenham perdido o sentido.
De certa forma, essa era uma das ideias políticas mais importantes do grupo de filósofos conhecido como Escola de Frankfurt. Ela consistia em lembrar que nossas sociedades pretensamente liberais mostravam uma forma muito peculiar de autoritarismo, algo diferente do clássico modelo "lei e ordem", no qual a repressão e o silêncio eram a lei.
Na verdade, nossas sociedades haviam constituído um modelo que misturava deliberadamente violência policial e frivolidade midiática, cenas de agressão estatal contra grupos vulneráveis e notícias sobre como "Foto de J-Lo e Drake juntos aumenta rumor de romance", informações sobre como o governo de São Paulo diminuiu o número de horas/aula de história juntas à descoberta impressionante de que "Jennifer Lawrence não quer mais tirar fotos com fãs".
Nas dinâmicas atuais de controle, política e economia libidinal andam juntas em uma mistura animada por violência estatal e indústria cultural.
De fato, independentemente do que está a acontecer, o recado principal é: a festa não pode parar.
A tristeza e indignação devem ser compensadas com a certeza de que "a vida continua e deve continuar", de que, apesar das dificuldades, não devemos deixar de celebrar.
Por isso, melhor seria lembrar como o riso nem sempre está do lado da crítica. Há momentos em que o riso está do lado do poder, em que a festa está do lado da ordem.
As pessoas são controladas por meio de suas formas de diversão, que moldam seus modos de sensação e seus circuitos de afetos.
Quem organiza a maneira com que você se diverte controla os fundamentos do poder. Assim, o autoritarismo pode se impor não através da censura e da proibição, técnicas bastante primárias. Ele acaba por se impor através de algo muito mais sofisticado: a irrelevância da verdade, a proliferação da frivolidade, a anestesia de quem não consegue mais sentir urgência alguma.
Nesse sentido, a verdadeira imposição disciplinar não é o antigo "Não reclame diante da crise, trabalhe". Não, você pode apelar a outra técnica, muito mais afeita aos engenheiros de relações públicas e às agências de publicidade, a saber: "Não reclame diante da crise, divirta-se".
De preferência, faça como os EUA, tenha um presidente que acabou de sair de um programa de TV e de patrocinar concursos de Miss Universo enquanto decretava falência quatro vezes para socializar suas perdas, ou, se não der, tenha um prefeito animador de festas do jet set. No mais, feliz ano novo.


Texto de Vladimir Safatle, na Folha de São Paulo

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