quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

O dia depois de Aleppo

Bashar al-Assad, ditador da Síria, celebra nestes dias sua vitória em Aleppo. Ele colocará nesta cidade as bandeiras do regime e seus próprios retratos, como os tantos outros que enfeitam o restante do território que controla.
É um importante avanço estratégico. Aleppo era a maior cidade da Síria quando a guerra começou, em 2011, e tornou-se um emblema do conflito. Mas é difícil imaginar que Assad celebre hoje em Damasco. Ele deve se lembrar de que os embates civis tão cruentos têm violentas consequências.
Seu pai, Hafez al-Assad, enfrentou também a seu tempo revoltas no país. Ele reprimiu a dissidência em Hama, em 1982, com a mesma estratégia: um cerco. As mortes, estimadas pelo jornalista britânico Robert Fisk em 20 mil, deixaram uma fratura social – reaberta nos últimos anos.
Assad lida, ademais, com uma população que compartilha, entre seus mitos fundadores, a história de Karbala. Ele sabe que uma guerra civil pode marcar uma comunidade não apenas por décadas, mas também por séculos.
A Batalha de Karbala, travada em 680 no que é hoje o Iraque, foi um dos episódios fundamentais da história do Oriente Médio. Uma "fitna", como é dito em árabe, uma "divisão". Em resumo: disputavam àquela época os partidários de um califado por eleição, que são conhecidos hoje como "sunitas", e os defensores de que o governo fosse hereditário, os "xiitas". Essa história está detalhada no livro "After the Prophet", de Lesley Hazleton.
Hussein, neto do profeta Maomé, se recusava a seguir o califa Yazid. Ele foi cercado por um exército em Karbala, ao lado de seus seguidores. Havia mulheres e crianças entre eles. Os soldados lhes impediram a fuga, lhes negaram água. Um a um, eles morreram ali. Hussein foi decapitado.
A morte da comitiva de Hussein, estimada em pouco mais de cem pessoas, não resolveu a crise política. Pelo contrário. O episódio tornou-se símbolo da opressão e agravou as rachaduras na comunidade muçulmana. O martírio de Hussein é até hoje celebrado todos anos pela população xiita.
É uma história que ainda habita as superfícies na região. Subhi al-Tufayli, que foi secretário-geral da milícia libanesa xiita Hizbullah entre 1989 e 1991, recentemente comparou Aleppo e Karbala em um inflamado discurso. O cerco atual é, disse, tão catastrófico quanto o medieval.
As comparações são limitadas e não dão conta, por exemplo, da barbárie também cometida pelos rebeldes armados em Aleppo. Mas a memória tem função exemplar: recorda as partes envolvidas no conflito de que as 100 mil pessoas mantidas sob cerco, entre a fome e a chuvarada de bombas, vão cobrar o seu preço. Ainda que seja só nas páginas da história.


Texto de Diogo Bercito na Folha de São Paulo

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