Era um agosto no começo dos anos 1960, e a gente estava descendo, de carro, de Milão até Aqaba, na beira do mar Vermelho.
"A gente" significa meus pais, meu irmão e eu. Era uma das viagens pelas quais meu pai nos levava, para conhecer o mundo. Fomos várias vezes para o Oriente Médio, uma vez até a Índia, outra pela África do Norte inteira etc.
Ele tinha uma confiança ilimitada nos nossos automóveis sucessivos e nele mesmo como motorista. Além disso, era como se acreditasse que nada de ruim pudesse nos acontecer porque a intenção da viagem era justa e respeitosa.
Carregava consigo uma malinha cheia de remédios para nós, caso adoecêssemos, e também para os eventuais doentes que encontrássemos. Com isso, durante suas férias, ele se tornava uma espécie de clínico geral sem fronteiras, ambulante.
Não consigo reconstruir o ano exato dessa lembrança. Era antes de 1967 (me lembro que Jerusalém era em parte jordaniana). E devia ser depois de 1961, porque, como você vai ver, a Síria estava num período de grande instabilidade (o começo dos anos 1960).
Entramos no país vindo da Turquia. Nossos vistos funcionaram na fronteira. Mas, antes de chegar a Aleppo, fomos parados por uma blitz na estrada (aliás, deserta). Os responsáveis pela blitz eram armados, mas à paisana –eles usavam uma braçadeira preta, como revolucionários que não tivessem tido tempo de mandar fazer seus uniformes.
Meu pai, resistente na luta armada menos de 20 anos antes, contra o fascismo italiano, não devia achar isso exótico. Ele já tinha feito parte de um "exército" sem uniforme, com apenas um lenço azul no pescoço.
Os homens armados tentaram nos mostrar que nossos carimbos de ingresso não valiam nada para eles. Meu pai, calmo e cordial, conseguiu convencê-los a colocar o próprio carimbo deles numa outra página de nossos passaportes. Tudo isso sem falar uma língua comum.
Enfim, não nos mataram. E o resto da viagem pela Síria foi assim, com paradas periódicas por homens que se indignavam à vista do carimbo anterior.
Aleppo, onde ficamos dois ou três dias, estava nas mãos do Exército oficial. Havia metralhadoras atrás de sacos de areia diante dos edifícios públicos. E, digo para que viva a lembrança, a cidade era lindíssima.
Na primeira noite, depois do toque de recolher, ficamos na varanda do hotel, tomando chá de menta. Ouviam-se tiros de armas automáticas, mas nunca suficientemente próximos para que a gente se refugiasse no hall ou nos quartos.
O garçom que nos servia falava francês, e meu pai lhe perguntou o que estava acontecendo na cidade e no país, explicando que a gente tinha entrado na Síria naquele dia, sem saber de nada"...
Era um homem idoso, de cabelos brancos, com uma barriga jovial –lembro-me mais dele do que da Cidadela ou da Grande Mesquita de Aleppo. Ele olhou para o meu pai e disse, como se fosse uma resposta: "Je suis Georges, l'arménien" –eu sou Georges, o armênio. Ele e meu pai se encararam um tempo, com simpatia, e não houve mais perguntas.
Depois de um tempo, com aquele barulho de armas automáticas que não parava na distância, eu perguntei por que o fato de Georges ser armênio implicava que ele não pudesse nos dizer o que estava acontecendo. Meu pai tinha uma extraordinária qualidade: nunca dourava pílulas para crianças. Se a realidade era horrível, problema de todos e problema das crianças também.
Conclusão, ficamos lá, naquele restaurante da Aleppo deserta durante o toque de recolher, tomando o chá de menta que era trazido por Georges sorridente e escutando a história do genocídio armênio. Georges, pela idade que aparentava, era um sobrevivente: devia ter chegado à Síria menino, nas marchas da morte, com mulheres e crianças morrendo de fome, de estupro e de maus tratos pelo deserto.
Talvez, concluiu meu pai, dizendo que ele é armênio, ele quisesse nos dizer que ele já pagou seu tributo ao horror do mundo. Que nada mais o toca mesmo, porque ele já morreu. Naquela noite, não dormi. Fiquei escutando os tiros.
Não me esqueci de Georges e das palavras do meu pai. O que prova que ele tinha razão: as viagens nos ensinavam coisas. Pensei em Georges vendo este vídeo sobre as crianças de Aleppo.
E desculpe, leitor, se este meu cartão de ano novo é piegas. Também, você pode achar que Aleppo é longe. Para mim é perto, como a voz do meu pai naquela noite. Desejo a todos, mundo afora, um ano melhor.
Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo.
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