sábado, 31 de dezembro de 2016

Admiro quem escreveu sobre outro assunto que não política em 2016

Admiro os que conseguiram, em meio ao amargo ano de 2016, escrever sobre outro assunto que não a política e a economia. Não foi meu caso.
Acabei dragada, refém dos Renans, Cunhas, Geddeis, Trumps e afins, sem saber para onde, querendo ou não, o mundo vai caminhar. Suspeito que para a pior.
Este foi o ano em que a ficção tomou uma surra da realidade.
Filmes, canções, peças, novelas e poemas se provaram ingênuos, inócuos, diante da violência do noticiário. Fomos todos Clara, de "Aquarius", limpando o pó dos vinis da estante, em meio aos tubarões de Boa Viagem.
Gastei horas e horas de 2016 escutando análises de especialistas, na tentativa de ter uma opinião formada. Joguei a toalha numa terça-feira besta de dezembro, ao zapear pelos canais de TV e dar com o programa "Entre Aspas", de Mônica Waldvogel, na Globonews.
A jornalista intermediava o debate entre dois doutores em economia, que divergiam sobre o impacto da aprovação do teto de gastos públicos na vida do cidadão.
Com os olhos arregalados, Pedro Paulo Bastos, da Unicamp, rebatia o diagnóstico do colega José Márcio Camargo, da PUC, de que corríamos o risco de nos transformar numa Venezuela, caso não freássemos o volume de benesses do governo, que atingiu a estratosfera durante o governo Dilma Rousseff.
Indignado, Bastos argumentava que as medidas de restrição penalizam apenas as classes mais baixas, seguindo a cartilha falida de Joaquim Levy, que levara o país à depressão. Segundo o especialista, não havia outra saída para nos tirar do lodaçal que não o aporte maciço de capital do Estado.
Camargo o olhava sereno, como se estivesse diante do equívoco em pessoa, respondendo que aquela fora a política adotada pela presidente afastada, política essa que nos levara ao fundo do poço.
Fui dormir convencida de que ambos estavam cobertos de razão. Todas as alternativas falharam. A economia não é uma ciência exata. Contra ou a favor, Fora Temer ou Dentro Temer, liberal ou pró-Estado, a vida é uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria, sem sentido algum.
Só Shakespeare para dar conta do paradoxo. Só Patti Smith cantando "A Hard Rain's A-Gonna Fall", de Bob Dylan, na cerimônia de entrega do Nobel 2016; só uma boa tragédia grega para transcender o absurdo.
Me curei do "Entre Aspas" sentada entre os 40 espectadores do teatro Poeirinha, no Rio de Janeiro, onde Andréa Beltrão encena uma adaptação de "Antígona", de Sófocles.
Diz o coro: "Muitas sa?o as coisas prodigiosas sobre a Terra, mas nenhuma mais prodigiosa do que o próprio homem. [...] Tudo lhe e? possível. Na criação que o cerca só dois mistérios terríveis, dois limites. Um, a morte, da qual em vão tenta escapar. Outro, seu próprio irmão e semelhante, o qual não vê e não entende".
A morte e o outro. A crise e a impossibilidade de diálogo entre as diversas crenças sociais, políticas, econômicas e religiosas.
Termino o ano na escuridão, elegendo a arte de farol.


Texto de Fernanda Torres, na Folha de São Paulo

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