Admiro os que conseguiram, em meio ao amargo ano de 2016, escrever sobre
outro assunto que não a política e a economia. Não foi meu caso.
Acabei dragada, refém dos Renans, Cunhas, Geddeis, Trumps e afins, sem
saber para onde, querendo ou não, o mundo vai caminhar. Suspeito que
para a pior.
Este foi o ano em que a ficção tomou uma surra da realidade.
Filmes, canções, peças, novelas e poemas se provaram ingênuos, inócuos,
diante da violência do noticiário. Fomos todos Clara, de "Aquarius",
limpando o pó dos vinis da estante, em meio aos tubarões de Boa Viagem.
Gastei horas e horas de 2016 escutando análises de especialistas, na
tentativa de ter uma opinião formada. Joguei a toalha numa terça-feira
besta de dezembro, ao zapear pelos canais de TV e dar com o programa
"Entre Aspas", de Mônica Waldvogel, na Globonews.
A jornalista intermediava o debate entre dois doutores em economia, que
divergiam sobre o impacto da aprovação do teto de gastos públicos na
vida do cidadão.
Com os olhos arregalados, Pedro Paulo Bastos, da Unicamp, rebatia o
diagnóstico do colega José Márcio Camargo, da PUC, de que corríamos o
risco de nos transformar numa Venezuela, caso não freássemos o volume de
benesses do governo, que atingiu a estratosfera durante o governo Dilma
Rousseff.
Indignado, Bastos argumentava que as medidas de restrição penalizam
apenas as classes mais baixas, seguindo a cartilha falida de Joaquim
Levy, que levara o país à depressão. Segundo o especialista, não havia
outra saída para nos tirar do lodaçal que não o aporte maciço de capital
do Estado.
Camargo o olhava sereno, como se estivesse diante do equívoco em pessoa,
respondendo que aquela fora a política adotada pela presidente
afastada, política essa que nos levara ao fundo do poço.
Fui dormir convencida de que ambos estavam cobertos de razão. Todas as
alternativas falharam. A economia não é uma ciência exata. Contra ou a
favor, Fora Temer ou Dentro Temer, liberal ou pró-Estado, a vida é uma
história contada por um idiota, cheia de som e fúria, sem sentido algum.
Só Shakespeare para dar conta do paradoxo. Só Patti Smith cantando "A
Hard Rain's A-Gonna Fall", de Bob Dylan, na cerimônia de entrega do
Nobel 2016; só uma boa tragédia grega para transcender o absurdo.
Me curei do "Entre Aspas" sentada entre os 40 espectadores do teatro
Poeirinha, no Rio de Janeiro, onde Andréa Beltrão encena uma adaptação
de "Antígona", de Sófocles.
Diz o coro: "Muitas sa?o as coisas prodigiosas sobre a Terra, mas
nenhuma mais prodigiosa do que o próprio homem. [...] Tudo lhe e?
possível. Na criação que o cerca só dois mistérios terríveis, dois
limites. Um, a morte, da qual em vão tenta escapar. Outro, seu próprio
irmão e semelhante, o qual não vê e não entende".
A morte e o outro. A crise e a impossibilidade de diálogo entre as diversas crenças sociais, políticas, econômicas e religiosas.
Termino o ano na escuridão, elegendo a arte de farol.
Texto de Fernanda Torres, na Folha de São Paulo.
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