segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

A Reforma da Previdência e o equívoco civilizatório

O governo brasileiro está reformando as regras da previdência, de tal forma que, para se aposentar com um salário ínfimo o cidadão terá que trabalhar 49 anos.  O motivo alegado é que as pessoas vivem cada vez mais e a relação entre os que trabalham e pagam e os que se aposentam, reduz-se a cada ano. O trabalhador que começar a ativar-se com 20 anos, poderá se aposentar, com remuneração limitada, com 69 anos, uma perversão. Como noticiam os jornais, militares e carreiras do Judiciário, que geram imenso déficit, não terão mudanças.
Segundo pesquisas, os povos caçadores-coletores que ainda existem no planeta, no interior da África, Austrália ou Brasil, trabalham quatro horas por dia em média para prover as necessidades básicas de sua família. O restante do tempo eles passam no ambiente familiar, atividades sociais, brincando com os filhos. Devia ser assim, mais de doze mil anos atrás com todos os humanos, antes da revolução agrícola, que começou na Suméria. Esta teria sido uma armadilha: quanto mais o homem produz, mais trabalha.
Foi para os historiadores o começo da chamada civilização. O homem começou a formar cidades e quando sobrou excedente, criou o Estado, com nobres, militares, sacerdotes, todos consumindo, sem produzir diretamente. Acrescente-se a explosão demográfica e a redução da mortalidade infantil. Houveram períodos de fome, peste, guerras, mas a humanidade prosseguiu. Com a revolução industrial, mesmo crianças e mulheres passaram a trabalhar doze ou até quatorze horas por dia. Quanto mais desenvolvido era o país, mais se trabalhava. Vieram então outros serviços públicos, o estado do bem estar social, ora mais socialista ora mais liberal. Conseguiu-se após muita luta reverter essa tendência e reduzir as horas de trabalho,  mas com novos avanços na produtividade parece que retomamos o sentido contrário, dizem que haverá escassez sem mudanças.
Além das disfunções sociais, na renda etc, um dos problemas parece ser o consumismo na sociedade atual. Não só a segurança e o status, mas a própria felicidade só parece ser possível a quem compra, consome: há que se ter o celular do ano, um carro razoável, roupas da moda. E então se consome como nunca, a tal ponto que arriscamos a própria sobrevivência da humanidade, sangramos os benefícios permitidos pelo planeta, poluímos sua atmosfera, acabamos com suas florestas.
O  consumismo em geral, e não apenas as disfunções sociais e a sobrevivência por tempo cada vez maior deve ser debitado a necessidade de se trabalhar 49 anos para se aposentar. De outra forma, com a produtividade alcançada, o prazo da aposentadoria deveria estar sendo reduzido, haveria um acúmulo de bens suficientes para que todos vivessem tranquilamente após alguns anos de trabalho..
Mas seria possível mudar essa direção? Essa cultura? Consumir menos o que é desnecessário, trabalhar menos, aposentar-se mais cedo? Seria possível buscar a felicidade em outras atividades? Ajustar-se, de forma a ter menos nobres, militares e sacerdotes?
No sistema atual, parece-nos impossível. O regime de mercado vive justamente do excesso de consumo a que as pessoas se acostumaram e exige classes governantes, burocratas, policiais e cadeias, conforto espiritual. Principalmente, se as pessoas não compram, fábricas e lojas param de produzir e vender, demitem funcionários e temos a crise. Faltarão recursos para qualquer tipo de aposentadoria. Consumir é preciso.
É como o cachorro atrás do rabo. A mudança não parece estar apenas nas propostas liberais ou socialistas. É preciso mudar  o conceito de bem estar e felicidade, todo o projeto civilizatório.  Quem se habilita?

Texto de Percival Maricato, no Jornal GGN

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