quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Doria não liga para vidas salvas com redução da velocidade nas marginais

"Meu marido é médico e trabalha em uma das UTIs de um grande hospital público de São Paulo. As vítimas de alguns dos acidentes de trânsito mais espetaculares que aparecem nos telejornais vão parar lá. Pessoas trituradas, aos pedaços, loucas de dor, que os profissionais de saúde vão juntando, cuidando. Muitas não resistem, outras sobrevivem mas jamais serão autônomas de novo; raramente partem sem sequelas.
Ao contrário de quem vê a notícia do acidente na TV, admira o carro esmagado, diz "que horror" e vai fazer outra coisa, meu marido e a equipe da qual ele faz parte encaram a pessoa e sua família, dão as notícias mais atrozes, tomam decisões e assumem responsabilidades sobre tratamentos. Muito além da técnica, a equipe testemunha o impacto dos acidentes naquelas vidas. Um mar de sofrimento.
Algumas pessoas ficam lá por horas, outras por semanas. Por vezes, meu marido explode de estresse e de tristeza. Todo profissional da saúde passa por isso.
O Brasil é o quinto país no mundo em mortes por acidentes de trânsito. Somente em 2013, o SUS registrou 170.805 internações por acidentes de trânsito. Os médicos do sistema público, obrigados a gerir a escassez, assistem ao gasto evitável de mais de R$ 200 milhões por ano no atendimento às vitimas– e ainda assim sabemos que, por falta de recursos, elas não recebem toda a assistência que precisariam ou merecem.
Só com motociclistas, nos últimos seis anos, as internações hospitalares no SUS tiveram um crescimento de 115% e o custo com o atendimento a esses pacientes, de 170,8%. Por isso, quando vimos que a futura gestão municipal assegurou que vai mesmo cumprir a promessa de aumentar os limites de velocidade em São Paulo, nós dois choramos.
Num devaneio, eu desejei que os marqueteiros de Doria fossem responsáveis pela acolhida de acidentados nos hospitais públicos de São Paulo e que eles fossem encarregados de dar as notícias às famílias. Porque em São Paulo ainda estão longe de entender que trânsito é uma questão de saúde pública, custeada pelo contribuinte brasileiro.
Qualquer estudo sabe que todo acidente torna-se mais grave em maior velocidade, mas a politicagem de quinta categoria dificulta uma evolução cultural imprescindível: ficar uma hora a mais no trânsito é desagradável; não chegar em casa, ou chegar com sequelas, é bem mais. E custa caro, de todas as formas, para todos nós."
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Reproduzo acima o desabafo de uma amiga, com o qual concordo 100%. É inacreditável o tamanho do retrocesso a que vamos assistir a partir de janeiro, com o aumento da velocidade nas marginais. A diminuição das velocidades nessas vias, determinada pelo prefeito Fernando Haddad (PT) na metade do ano passado, gerou uma redução de quase 50% nos acidentes com mortes.
Nos 15 meses anteriores à nova regra, registraram-se 77 ocorrências desse tipo. Nos 15 meses seguintes, o número despencou para 39. Casos de atropelamentos fatais não ocorrem na marginal Tietê há mais de um ano e meio.
Mas nem todas as evidências do sucesso dessa medida e nem os apelos de quem está linha de frente dessa carnificina evitável foram suficientes para conter a demagogia do prefeito eleito. A partir de 25 de janeiro, as máximas nas pistas expressas e centrais retornarão aos patamares anteriores –90 km/h e 70 km/h, respectivamente. Na faixa direita da pista permanece o atual limite de 50 km/h; nas demais, subirá para 60 km/h.
O Estado de São Paulo fez história ao sancionar em 2009 a Lei Antifumo, que baniu o tabaco dos ambientes fechados de uso coletivo, que depois foi seguida pelo resto do país. Em termos de saúde pública, a redução da velocidade máxima das vias de São Paulo se mostrou um sucesso semelhante. A capital paulista tinha tudo para protagonizar uma mudança nacional, mas resolveu virar as costas para o êxito obtido até agora.
É recomendação da OMS (Organização Mundial da Saúde) que vias urbanas jamais permitam velocidade acima 50 km/h. Segundo a organização, 47 mil brasileiros morrem todos os anos em razão de acidentes nesses locais. A OMS estima em R$ 27 bilhões (1% do PIB) o custo dessa carnificina no Brasil.
João Doria não está sendo um irresponsável sozinho. O seu padrinho político, o governador Geraldo Alckmin (PSDB), será corresponsável e, ao mesmo tempo, financiador da barbárie que se avizinha. Afinal, é dos cofres estaduais que sai a maior parte dos recursos que sustentam o Hospital das Clínicas de São Paulo, instituição que atende a maioria dos acidentados de São Paulo.
Também é bom lembrar que, em última instância, Doria também poderá ser responsabilizado pelas futuras mortes que ocorrerem nas vias com velocidade aumentada. Se as vidas até agora poupadas não tiveram força suficiente para impedir esse retrocesso, quem sabe o peso das futuras ações criminais e indenizatórias tenha mais sucesso.


Texto de Cláudia Collucci, na Folha de São Paulo

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