Nos últimos 15 dias, peguei 12 voos. Não tenho problema em viajar de
avião, ao contrário de muita gente que sua frio só de pensar. Sinto
muito mais medo de ônibus. Sofri um acidente que matou três pessoas.
Desde lá só de entrar em um o pânico me consome.
Mas dia desses, chegando ao Rio num voo supertranquilo, o avião já fazia
aquela curva ao lado do Pão de Açúcar, aquela que parece que a aeronave
vai encostar na água, quando o piloto arremeteu e foi lá para os lados
de Niterói. E nada de ninguém falar o que havia acontecido. E os poucos
passageiros com os pescoços espichados nas janelas.
Só uns cinco minutos depois, aqueles cinco minutos que podem durar uma
maratona, soubemos que uma chuva tinha despencado de repente, com ventos
de 70 km/h. Achei o piloto meio nervoso. Prolixo. Parecia querer
explicar muito algo aparentemente simples. E o avião foi se afastando da
costa, dando voltas. Só era possível ver mar e nuvens. Pronto. E se ele
estiver sequestrando o avião? E se ele for um maluco que resolveu
acabar com a vida e se atirar no mar?
O voo está vazio. Todo mundo sabe que avião vazio não cai. Tragédia
mesmo é sempre com avião cheio. Eu tentava me acalmar, ocupando a cabeça
com estatísticas elaboradas por mim mesma. Em vão. Pela primeira vez na
vida senti o maior e mais absoluto cagaço. Desculpe o português, mas só
isso descreve o tamanho do pavor.
Só o que me faltava, depois de velha ficar cagona. Tenho no meu
currículo um salto de paraquedas, dois de asa-delta, dois de parapente,
um revezamento de corrida de São Paulo ao Rio, além de outras
"sandices", como se refere às minhas peripécias meu cardiologista.
O coração, aquele músculo involuntário, sempre aguentou firme todas as
fortes emoções, incluindo homéricos pés na bunda, saldo negativo no
banco, uma temporada de "Making a Murderer".
Nunca tive medo de morrer. Até a semana passada. Morrer passou a ser um
problema. Como se não bastassem os que já tenho. A sensação da
imortalidade era ainda um dos últimos resquícios da minha resistência à
maturidade.
Tem uma explicação científica para todas as merdas que fazemos até os 25
anos. A gente não tem noção do perigo. A gente nunca acha que vai
morrer seja dirigindo depois de beber ou usando heroína. A gente acha
que pode tudo. Até o dia em que não saímos mais de casa sem um casaco
com medo de ser atropelado e não acreditamos em mais ninguém.
O avião dando voltas sobre o mar e eu percebi que estava realmente
preocupada com minha possível falta de futuro. Olhei a última mensagem
trocada com meu marido, tão cheia de amor e sacanagem. Não, não posso
morrer agora. A gente ainda quer se casar na Toscana, num fim de tarde,
rodeados de poucos amigos queridos. Tudo bem, meu amor, pode ser em
Bento Gonçalves.
Pensei nas coisas linda que comprei em Cartagena para arrumar uma mesa
festiva com as cores da Colômbia e usar a panela de barro que o Marcos
trouxe de Goiânia. Minha moqueca de camarão é um espetáculo. Se eu fosse
você não perderia essa chance enquanto eu estiver viva.
Tenho textos para entregar, projetos para concluir. Logo agora que
resolvi ser YouTuber. Não é hora. O livro, "deosdoceu", o livro. Já me
pagaram o adiantamento e nada de eu entregar. Como vou explicar que
dessa vez sai, se morrer agora?
Logo agora que faço o que gosto, que casei com o amor da minha vida, que
adotei um gato. Prometi repetir uma viagem com minha mãe no ano que
vem. Fazer uma festa escandalosa para comemorar meu aniversário. As
férias estão pagas. Que desperdício.
Quarenta e cinco minutos depois, e quando eu já me preparava para
começar a comer as unhas que ainda restavam, o piloto anuncia que o
pouso estava próximo. Pensa que eu acreditei?
Texto de Mariliz Pereira Jorge, na Folha de São Paulo.
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