Dentre as alegrias do cinema mudo, há quem se lembre dos "Keystone
Cops", policiais amalucados que, a qualquer alarme, partiam correndo em
todas as direções ou se apinhavam em calhambeques explosivos, para maior
descrédito de sua autoridade.
Também os seguidores de são Francisco de Assis saem desabalados sem
maior motivo no filme de Roberto Rossellini lançado há pouco na coleção
de cinebiografias da Folha.
Começa a chover: peregrinando sem rumo, os fradezinhos pulam nas poças
d'água como se fossem crianças. Chega a primavera, resolvem colher
flores para enfeitar a mísera capela que construíram; espalham-se então
com a pressa de quem vai apagar um incêndio.
São, todavia, amigos do fogo, que também brinca com eles. Exageram na
quantidade de lenha utilizada em suas pobres atividades culinárias; o
burel de um frade começa a queimar-se também. Não há porque reclamar
disso, intervém são Francisco: o fogo é nosso irmão, "belo e jocundo,
vigoroso e forte".
Passagem mais assustadora na vida do santo é comentada por Gilbert Keith
Chesterton (1874-1936). Com uma séria doença nos olhos, Francisco tem
de cauterizá-los com um tição em brasa. Até nesse momento ele brinca:
"Irmão fogo, Deus o fez belo, forte e útil; peço-lhe que seja gentil
comigo".
O livro de Chesterton sobre são Francisco sai agora em nova tradução no
Brasil, pela editora Mundaréu, e faz excelente companhia para o filme de
Rossellini. Como sempre, o autor inglês não recua diante dos mais
improváveis paradoxos e dedica o melhor de sua extraordinária
inteligência para iluminar as simplicidades do santo.
Assim, no episódio da brasa aplicada ao olho, Chesterton assinala o
quanto havia de irônico, e mesmo de cortês, na relação de são Francisco
com o mundo real. Mesmo na máxima pobreza, são Francisco reteve alguns
farrapos da vida de luxo que tivera na juventude.
É que não abandonou as maneiras da corte: pede licença, pede desculpas, faz reverências ao mais humilde animal.
A diferença, diz Chesterton, é que, se na corte existe um rei e cem
cortesãos, na vida de são Francisco ele era um só cortesão circulando no
meio de cem reis. Suas gentilezas com o fogo, a lua, a água ou os
pássaros não representavam, entretanto, um mero "amor à natureza".
Bem ao contrário: a natureza, como entidade algo abstrata e sentimental,
era coisa que ele desconhecia. Para Chesterton, o santo era
precisamente alguém que via as árvores —cada árvore—, e não a floresta.
Donde, talvez, tanta correria, tanta pressa em chegar mais perto. Como
na criança que não deixa nunca de perguntar, numa viagem, se "já estamos
chegando", a pressa é elemento inseparável de todo espírito de entrega.
São Francisco saiu correndo atrás de um mendigo a quem não pôde atender
no momento exato —e é essa celeridade, notada no começo do livro de
Chesterton, que dá um tom de comédia, entretanto terna e serena, ao
filme de Rossellini.
Dois dos seguidores de são Francisco são verdadeiros patetas. Jogam
lenha na panela, por exemplo, em vez de jogá-la ao fogo; ou então cortam
viva a perna de um porco, achando que seus gritos de dor são expressões
de alegria por estar contribuindo para saciar a fome de alguém.
No filme, os franciscanos fazem jus ao título de "jograis de Cristo",
ou, se quisermos traduzir, os saltimbancos, os comediantes de Cristo. Na
cena final, todos devem separar-se para espalhar os ensinamentos do
mestre. São Francisco manda que girem em círculos até ficarem tontos e
que sigam o caminho que cada cabeça apontar no momento em que caírem no
chão.
O mais tolo dos frades é o que mais tempo demora a sentir vertigem.
Velho cabeça-dura, também resisto às labirintites da religião. Mas a
alma, esta segue seu próprio caminho.
Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo.
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