Discípula de Ana C., escritora insiste no registro de sua vida
FELIPE FORTUNA
ESPECIAL PARA A FOLHA
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É bem possível que Alice Sant'Anna seja quem mais racionalize e aplique, em sua poesia, as técnicas de despistamento e o intencional movimento pendular de confissão e ficção presentes na poesia de Ana Cristina Cesar.
Num ensaio recente sobre os rascunhos e originais que compuseram o livro "A Teus Pés", a aplicada discípula salienta, justamente, o "tom de segredo ao pé do ouvido", entre vários outros aspectos que caracterizam os poemas daquele livro de 1982.
Apropriação de versos alheios, citações disfarçadas, recurso ao palimpsesto, vampiragens (Alice Sant'Anna alerta: "ou homenagem, bem entendido") têm serventia para a constituição das falsas memórias, das criativas reinvenções de espaços e tempos que podem ou não terem existido, uma vez que toda memória é traição, toda biografia é recordação falseada.
A mesma fluidez enganosa das lembranças se reproduz na falta de distinção entre poema e prosa que caracteriza "Pé do Ouvido".
O longo poema de quase 50 páginas se divide em duas partes (a segunda, brevíssima) e flagra a poeta em constante movimento: "descer a brook street/ os sapatos novos/ reluzentes com sola de madeira/ que fazem barulho".
A partir daí, tem início uma série de justaposições e de interferências, que inserem blocos de mais poemas, com pensamentos, anotações, reparos, perguntas, observações díspares de quem se desloca: "se tivesse o corpo macio / faria a posição dos jogadores de beisebol / antes de arremessar a bola / talvez o beisebol tenha sido inventado / só para que esse movimento seja possível.
Dificilmente o poema abandonará esse padrão de inserir livres associações e alusões indecifráveis (mesmo porque o que está em foco é a história pessoal de uma "ela").
Obviamente, o leitor poderá discordar de partes autônomas do poema, a exemplo da afirmação pueril de que "na poesia japonesa quase não / se vê metáfora".
Um poeta como Hagiwara Sakutaro confrontou a tradição do simbolismo e assim escreveu sobre o mesmo barulho dos sapatos em "Uivando à Lua" (1917), com seu vigoroso controle das metáforas e expansivo coloquialismo.
Em "Pé do Ouvido", as menções à poesia japonesa estão distribuídas ao longo do poema, mas, ironicamente, não surgem dúvidas sobre uma palavra, um verso ou uma expressão naquela língua oriental.
Deslocando-se sempre, "ela" pode, no entanto, perguntar abruptamente questões de inglês, ecoando, de novo, Ana Cristina Cesar: "a diferença entre solitude / e loneliness qual é?".
"Pé do Ouvido", por suas características, mal se distingue da sensibilidade e do estilo de quem compôs "Rabo de Baleia" (2013), o livro anterior de Alice Sant'Anna.
Existe em "Pé do Ouvido" a mesma tendência ao registro que se manifesta, por exemplo, em "14, Dorchester Place". É o que eu agora denomino de aventuras planas, acúmulo de notações sem qualquer culminância.
Longos trechos de indubitável prosaísmo poderão surgir ("a bolinha que joga dentro da secadora/ é para evitar a eletricidade estática/ no frio as roupas dão choque/ a cortina o lençol até o carpete / dão choque/ nos fones uma voz feminina/ muito aguda"), mas a poeta segue célere na marcação diária da sua vida –, e o leitor, hipócrita ou não, que a siga até onde for possível.
Reprodução da Folha de São Paulo.
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