quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Valeria Luiselli dá voz a crianças que entraram ilegalmente nos EUA


"Mãe, você conseguiu ajudar os meninos perdidos?".
Depois de um dia desgastante de trabalho voluntário, em Nova York, traduzindo respostas de dezenas de crianças imigrantes para que um grupo de advogados quem sabe ajudasse a salvá-las da deportação, a escritora mexicana Valeria Luiselli, 33, não tinha palavras para responder à pergunta da própria filha: "Não sei, eu só traduzo as respostas".
A menina de seis anos não se conformava, queria detalhes. Luiselli contava, então, algumas das histórias com as quais ia topando.
Uma delas deixou a filha obcecada. Era a de duas menininhas de uma aldeia da Guatemala, de 5 e 7 anos; indígenas, tinham o espanhol como segunda língua. Cruzaram a fronteira acompanhadas somente de um "coiote" —um atravessador de imigrantes ilegais— pago pela mãe, que havia se instalado nos EUA anos antes.
Angustiada com a possibilidade de perder as meninas no meio do caminho, a avó, com quem até então elas viviam na Guatemala, costurou nos vestidos das duas o número do telefone da mãe e deu apenas uma recomendação às netas: "Não tirem o vestido nunca, jamais, nem para tomar banho".
Esse e outros relatos estão no ensaio "Los Niños Perdidos" (Sexto Piso), que a autora de "A História dos Meus Dentes" (Alfaguara), um dos destaques da última Flip, lança agora em espanhol. O livro, com prefácio do jornalista Jon Lee Anderson, logo será traduzido para o inglês.
"Quando comecei esse trabalho voluntário, não tinha ideia de transformá-lo em um livro, mas depois pensei que, se minha experiência servisse para iluminar um pouco quem escreve para jornais, quem forma opiniões nos EUA, teria uma razão de existir, e por isso o fiz", conta.
O texto parte de uma viagem de Luiselli com o marido, o também escritor mexicano Álvaro Enrigue, e os filhos. Eles cruzaram o interior dos EUA enquanto esperavam que saísse o "green card" do casal —que há tempos já vivia e dava aulas em universidades norte-americanas.
No meio da viagem, começaram a ouvir a história dos mais de 200 mil menores desacompanhados que, naqueles 2014 e 2015, vinham atravessando a fronteira dos EUA.
"O bacana foi ver que, desde então, muita gente se mobilizou voluntariamente, advogados, gente querendo de fato ajudar", diz Luiselli, que acabou se juntando a eles.
"A parte ruim é que isso ocorreu já no meio da campanha eleitoral, e Donald Trump fez da imigração ilegal um inimigo a ser combatido."
 
QUESTIONÁRIO

O ensaio se estrutura em torno do questionário que Luiselli tinha de aplicar às crianças, em espanhol, e depois traduzir para o inglês.
Segundo o conteúdo das respostas, os advogados poderiam argumentar que as crianças não deveriam ser deportadas por correrem riscos ou por estarem abandonadas.
A lista de perguntas foi formulada para tentar indicar se os menores haviam sofrido abusos em seu país de origem ou se tinham sido atacadas nos EUA. Nesses casos, caberia um pedido de asilo. Qualquer outra alternativa levaria à deportação imediata.
A crise dos "meninos perdidos", para usar o termo criado pela filha de Luiselli, é apenas uma das facetas da terrível epidemia de violência pela qual passam os países do chamado Triângulo do Norte (Guatemala, El Salvador e Honduras), no qual uma guerra de gangues vem causando violência e destruição.
Pais que enviam seus filhos ao Norte ou mandam busca-los, estando já nos EUA, são motivados pelo medo de que seus filhos sejam recrutados pelas facções criminosas.
O livro mescla um experimento de linguagem com crítica social. Por um lado, Luiselli joga com dois idiomas, o inglês e o espanhol, e quiçá um terceiro, a língua das crianças, uma vez que, em muitas ocasiões, tem de traduzir a linguagem burocrática e técnica dos advogados para que elas entendam.
Ao mesmo tempo, tem de se manter imparcial, não pode dar conselhos ou sugerir respostas. "Não me serviria também tentar arrancar histórias medonhas sobre o que sofreram no caminho se elas não queriam contar. Eu não sou psicóloga, não saberia lidar com aquilo."
Em pouco mais de cem páginas, a obra lança questões que serão cada vez mais atuais caso o presidente eleito dos EUA, Donald Trump, queira de fato promover uma deportação em massa.
"Muitas dessas crianças buscavam pais e parentes também ilegais. Ao saber que eles tinham chegado, esses adultos se apresentaram, se registraram. Esse é um arquivo que Trump pode usar para deportar essas pessoas. É um perigo imenso", diz Luiselli.
O livro também mostra matizes da questão não aventados nas campanhas contra e pró imigração —como as que saltam da história do menino hondurenho Manu, que é retirado de seu país às pressas pela tia, que vive nos EUA, depois que uma das gangues mata seu melhor amigo.
Manu chega "com a picardia de um adolescente", sem a visão edulcorada dos "United" —como chamam o país.
Do subúrbio nova-iorquino em que vai viver enquanto espera o julgamento de sua causa, diz: "Isso aqui é igual a Tegucicalpa, tem gangues na escola e tudo". Luiselli passa a refletir, então, sobre a impropriedade do uso do termo "imigrante ilegal".
"O que temos é uma situação de refugiados, mas admitir que é uma guerra seria pedir que os governos tomassem outra postura diante do problema, que admitissem parte da responsabilidade, e talvez nenhum deles queira fazer isso nesse momento".
A boa notícia —uma das poucas que Luiselli teve, porque, no geral, perdeu a pista das crianças que entrevistou— é que Manu conseguiu regularizar sua situação. Hoje o menino vive na mesma vizinhança que ela e se engajou na ajuda aos imigrantes.
"É uma alegria no meio de muitas sagas que para mim ficaram em aberto para sempre", resume a autora.


Reportagem de Sylvia Colombo, na Folha de São Paulo

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