– E a Dolores, seu Gonçalo, ainda mora no Durasnal?
– Bah, seu Paulinho, coitada, morreu no ano passado, não soube? Segurei-lhe a mão antes dela deixar este mundo, recitando rezas em romani, que nunca aprendi, o senhor sabe, os ciganos não ensinam sua língua aos outros povos. É tradição desse povo tão sofrido.
– Ah, perdão. desculpe-me, seu Gonçalo, pela pergunta, mas ouvi falar aqui no bolicho, certa vez, que o senhor teve um namoro com ela, isso é verdade ou invenção do povo?
– É verdade, sim, nunca falei disso, mas hoje vou contar:
“Eu era um piá, voltava do colégio, num sábado, lembro como se fosse hoje. Morávamos na beira da estrada e tomei um susto quando vi o acampamento, lotado de barracas de lonas, grande algazarra de gente, música e dança, carroças coloridas, cavalos e arreios enfeitados, gente tocando violões, sanfonas, muitas mulheres preparando comida em fogões improvisados no chão, alarido de crianças. Meu pai, sentado na cadeira de balanço, pitava um palheiro e disse: ‘São ciganos, pediram para ficar uns dias e permiti. É gente boa, sem pátria, esculachados, perseguidos. Eu os admiro e acho que tu vais gostar deles.’
Pois não é que gostei mesmo? Na manhã seguinte, conheci a Dolores, ainda menina, que veio com a mãe pegar uns pães em nossa cozinha. Me encantei com ela, na hora, foi paixão juvenil. Uma moreninha de olhos gateados, cabelos negros que desciam pelas costas, um vestido de chita, uma faixa vermelha na cabeça, uma figura bem diferente das minhas colegas da escola. E ria pra mim! Eu ri também e começamos a brincar com os gatos, com os cachorros, com tudo, ela falava enrolado, eu nada entendia, só intuía. E não nos largamos mais.
Quando voltava a pé do colégio, ela estava me esperando na porteira. Queria me contar o que tinha feito. E íamos para debaixo das amoreiras, naquela primavera, comer as frutinhas roxas e doces. Um dia ela me deu um beijo com a boca sangrando de amora e eu fiquei sem fala. Mas nossas tardes de sonho e alegria não duraram muito. Uma tarde me deparei com o acampamento desmontado, as carroças já passavam a curva da estrada. Saí correndo e só via aquela mãozinha me abanando, corri, cheguei perto e pedi que voltasse. Seu Paulinho, ela voltou. Só que 50 anos depois, velha e doente, lendo cartas para sobreviver. Seu clã havia sido dizimado. Eu já morava na cidade, então permiti que ficasse na casinha que ainda estava erguida lá no Durasnal. Eu havia casado, tive filhos, depois fiquei viúvo. Decidi terminar minha vida sozinho, porém a ajudei. Quando cheguei na casinha, naquele dia, abri todas as portas e janelas, como gostam os ciganos, ela pegou minha mão e disse: ‘Si e kerdo. Me volvi tu’. (Está feito. Eu te amo). Lavei seu corpo com sal e a enterrei no lugar que mais gostava, debaixo das amoreiras. Acho que devíamos ter ficado juntos, mas o destino não deixou. A vida é assim, passa ligeiro, mas ficam as cicatrizes e as lembranças.”
(Reproduzo aqui o que ouvi de seu Gonçalo há muitos anos atrás. Nada inventei. Em virtude do tempo, posso ter omitido alguma coisa, mas o que me lembrei, contei.)
Do blog Campereadas, no Correio do Povo.
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