A sociedade não aguenta mais impostos: vejo a frase repetida diariamente
pelos especialistas em política e economia, coisa que em absoluto não
sou. Tira-se dessa constatação a consequência terrível: o único caminho é
cortar, cortar mais, cortar sempre as despesas do Estado.
Não há dúvida de que cortes são necessários e possíveis. Uma conhecida
conseguiu, nos seus tempos de estudante, vaga de estagiária numa grande
empresa estatal de energia. Morava num dos Estados mais pobres do país.
Surpreendeu-se quando lhe mostraram a sala exclusiva de que dispunha
para suas vagas atividades. A persiana era acionada por meio de controle
remoto. Passado algum tempo para se habituar ao novo ambiente, ela
perguntou o que teria de fazer.
O departamento estava em grande atividade. Preparava-se a festa de
aniversário de uma colega. A decoração, o bolo, as bebidas e docinhos
iam por conta de uma verba pública. A rotina, como a estagiária não
demorou a perceber, repetia-se mais de uma vez por mês. Até mesmo a mãe
de uma funcionária foi homenageada nesses eventos.
O exemplo é minúsculo, mas choca saber que a coisa acontecia num Estado paupérrimo, num cargo sem poder nenhum.
Acrescento que não tenho maiores restrições a propostas normalmente
tachadas como "ultraliberais". A privatização da Petrobras não
prejudicaria em nada, a meu ver, os ideais de igualdade e justiça social
que gostaria de ver fortalecidos no país.
Dito isso, volto ao grande mantra: a sociedade não aguenta mais impostos.
A sentença é irresponsavelmente imprecisa. De que se está falando quando se fala em "sociedade"?
Dou um exemplo pessoal. Até 1995, eu pagava 35% de alíquota do Imposto
de Renda. Não morri por causa disso. Veio o governo de são Fernando
Henrique, e meu imposto –assim como o de qualquer pessoa da classe
alta–baixou para 25%, subindo depois para os 27,5% em que se encontra
até hoje.
No Chile, país menos "estatista" que o Brasil, a alíquota máxima é de 45%. Nos Estados Unidos, chega a perto de 40%.
Outro exemplo. Para toda palestra que me convidam, artigo que me
encomendam ou coisa parecida, na hora do pagamento perguntam se eu tenho
microempresa.
Por que haveria de ter? As pessoas se espantam: aí você paga muito menos
imposto! É o que todo mundo faz! Sei bem do que se trata.
Em princípio, cobra-se pouco das microempresas porque isso seria uma
forma de estimular o pequeno produtor, favorecendo afinal de contas a
criação de empregos.
O fato é que não sou pequeno nem microempreendedor. Sou apenas uma
pessoa física, e não contrato nenhum funcionário. Constituir-me em
"pessoa jurídica", ainda que ato perfeitamente legal, nada mais me
parece do que um subterfúgio, uma forma de evasão tributária.
Ai dos governos que quiserem acabar com essa mamata. Com todo o ódio que
despertava entre os beneficiários do esquema, o PT não teve coragem de
mexer nesse vespeiro.
A "sociedade" não aguenta mais impostos. Sim, se pensarmos no que se
cobra a cada litro de gasolina ou a cada mísero casaco de lã. Não,
quando se pensa que o Brasil, ao lado da Estônia e não sei mais quem, é
um dos poucos países do mundo em que os ganhos de capital de uma pessoa
física são isentos de imposto. O assalariado paga, o capitalista não.
Já que o atual governo não corre o risco de panelaços da classe alta, e
já que está notoriamente afogado em dificuldades financeiras, bem que
seria o momento de corrigir essa iniquidade. Ah, mas "a sociedade" não
aceita.
Enquanto isso, vejo escolas em petição de miséria sendo ocupadas por
estudantes enraivecidos, e policiais invadindo a Assembleia Legislativa
do Rio de Janeiro. Registrou-se o caso de membros do Batalhão de Choque
solidarizando-se com os invasores.
Corretos ou não esses protestos, e já digo que alguma mudança na
previdência do funcionalismo público teria mesmo de ser discutida, uma
coisa é inegável: quando "a sociedade" encontra dificuldades até em
reprimi-los, é sinal de que também "não aguenta" a política proposta.
Uma greve total da polícia, de professores, de funcionários da saúde...
Será que temos mais condições de aguentar uma situação dessas do que de
aceitar um aumento dos impostos sobre os ricos?
Não é a sociedade que não aguenta. Os ricos é que não querem.
Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo. Grifos do blogueiro.
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