quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Reclamações contra os impostos escondem interesses de classe

A sociedade não aguenta mais impostos: vejo a frase repetida diariamente pelos especialistas em política e economia, coisa que em absoluto não sou. Tira-se dessa constatação a consequência terrível: o único caminho é cortar, cortar mais, cortar sempre as despesas do Estado.
Não há dúvida de que cortes são necessários e possíveis. Uma conhecida conseguiu, nos seus tempos de estudante, vaga de estagiária numa grande empresa estatal de energia. Morava num dos Estados mais pobres do país.
Surpreendeu-se quando lhe mostraram a sala exclusiva de que dispunha para suas vagas atividades. A persiana era acionada por meio de controle remoto. Passado algum tempo para se habituar ao novo ambiente, ela perguntou o que teria de fazer.
O departamento estava em grande atividade. Preparava-se a festa de aniversário de uma colega. A decoração, o bolo, as bebidas e docinhos iam por conta de uma verba pública. A rotina, como a estagiária não demorou a perceber, repetia-se mais de uma vez por mês. Até mesmo a mãe de uma funcionária foi homenageada nesses eventos.
O exemplo é minúsculo, mas choca saber que a coisa acontecia num Estado paupérrimo, num cargo sem poder nenhum.
Acrescento que não tenho maiores restrições a propostas normalmente tachadas como "ultraliberais". A privatização da Petrobras não prejudicaria em nada, a meu ver, os ideais de igualdade e justiça social que gostaria de ver fortalecidos no país.
Dito isso, volto ao grande mantra: a sociedade não aguenta mais impostos.
A sentença é irresponsavelmente imprecisa. De que se está falando quando se fala em "sociedade"?
Dou um exemplo pessoal. Até 1995, eu pagava 35% de alíquota do Imposto de Renda. Não morri por causa disso. Veio o governo de são Fernando Henrique, e meu imposto –assim como o de qualquer pessoa da classe alta–baixou para 25%, subindo depois para os 27,5% em que se encontra até hoje.
No Chile, país menos "estatista" que o Brasil, a alíquota máxima é de 45%. Nos Estados Unidos, chega a perto de 40%.
Outro exemplo. Para toda palestra que me convidam, artigo que me encomendam ou coisa parecida, na hora do pagamento perguntam se eu tenho microempresa.
Por que haveria de ter? As pessoas se espantam: aí você paga muito menos imposto! É o que todo mundo faz! Sei bem do que se trata.
Em princípio, cobra-se pouco das microempresas porque isso seria uma forma de estimular o pequeno produtor, favorecendo afinal de contas a criação de empregos.
O fato é que não sou pequeno nem microempreendedor. Sou apenas uma pessoa física, e não contrato nenhum funcionário. Constituir-me em "pessoa jurídica", ainda que ato perfeitamente legal, nada mais me parece do que um subterfúgio, uma forma de evasão tributária.
Ai dos governos que quiserem acabar com essa mamata. Com todo o ódio que despertava entre os beneficiários do esquema, o PT não teve coragem de mexer nesse vespeiro.
A "sociedade" não aguenta mais impostos. Sim, se pensarmos no que se cobra a cada litro de gasolina ou a cada mísero casaco de lã. Não, quando se pensa que o Brasil, ao lado da Estônia e não sei mais quem, é um dos poucos países do mundo em que os ganhos de capital de uma pessoa física são isentos de imposto. O assalariado paga, o capitalista não.
Já que o atual governo não corre o risco de panelaços da classe alta, e já que está notoriamente afogado em dificuldades financeiras, bem que seria o momento de corrigir essa iniquidade. Ah, mas "a sociedade" não aceita.
Enquanto isso, vejo escolas em petição de miséria sendo ocupadas por estudantes enraivecidos, e policiais invadindo a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Registrou-se o caso de membros do Batalhão de Choque solidarizando-se com os invasores.
Corretos ou não esses protestos, e já digo que alguma mudança na previdência do funcionalismo público teria mesmo de ser discutida, uma coisa é inegável: quando "a sociedade" encontra dificuldades até em reprimi-los, é sinal de que também "não aguenta" a política proposta.
Uma greve total da polícia, de professores, de funcionários da saúde... Será que temos mais condições de aguentar uma situação dessas do que de aceitar um aumento dos impostos sobre os ricos?
Não é a sociedade que não aguenta. Os ricos é que não querem.


Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo.  Grifos do blogueiro.

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