domingo, 6 de novembro de 2016

O barco

O mais importante é o cheiro. Não passa de um velho barco, descascado, cheio de rachas que deixam entrar água. Não é sólido nem belo, embora navegue bem: parece um ataúde desbotado, sem a parte de cima. Tem três bancos, sendo que o da popa é móvel, podendo ser removido para a colocação de um motor. Não passa de uma tábua encaixada nas laterais do barco. Parece um embrião e uma ruína. Mas há o cheiro. Cheiro de marés, areias molhadas, ventos e ondas.
Foi numa tarde que decidi comprá-lo. Indicaram-me os barcos aportados no canal, eram pesados e enormes. Não me serviam. Num bar onde fui tomar um trago, ouvi dizer que, próximo ao Forte, na enseada que marca o fim da praia, vendiam barcos:
—Procure o Vavá. Ele tem o que o senhor deseja.
Aproveitavam o cair da tarde para jogar suas redes. Um velho pescador, apoiado numa canoa em escombros, apontou em direção ao largo:
— Ele está ali, jogando a rede, depois daquelas pedras.
— Demora muito?
—Não. Deve estar de volta, por causa da maré.
Caminhei pela areia áspera. Ali funcionava uma colônia de pescadores, a praia estava cheia de detritos, pedaços de redes e barcos que haviam entrado em decomposição. Sentei-me para esperar.
Vi a silhueta de um barco surgindo das pedras que formavam uma espécie de ilha à minha frente. Os remos eram suspensos com cansaço. O remador procurava cortar a correnteza. Teria de vencer o canal, estreito, e logo entraria no remanso das águas que o trariam de volta.
O pescador apontou:
–Ai vem o Vavá.
À distância, o barco parecia uma tábua perdida, resto de naufrágio. Só parecia barco quando os remos faziam brilhar, ao sol da tarde, as suas pás encharcadas. Bem, aí tenho o meu barco.
Angela vinha vindo, trazida pela tarde. Apertou-me a mão.
— Como é bonito!


Texto de Carlos Heitor Cony, na Folha de São Paulo

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