Já reparou como algumas pessoas têm empregos indecifráveis? Nunca
entendi se elas simplesmente não fazem nada e enrolam com um papinho
hipster confuso, se fazem algo moderno e/ou chique demais para minha
idade e/ou limitação econômica ou se elas próprias não sabem o que fazem
e, portanto, não conseguem explicar direito.
Quase sempre tem a ver com energia, tendência, consultoria,
reposicionamento, eventos, big idea, coaching de alma, terapia do
espírito, personal arrumador de gavetas de meia. Mas de quê? Pra quem?
Onde? Que horas você sai da cama? Quem te paga? Que cazzo você faz
exatamente da vida? O quê, por Deus, é um design thinker ou um
trendhunter? Nunca saberemos.
Alguns dificultam tanto a descrição de seus afazeres que ganham uma
importância descomunal. Uma amiga que mora em Barcelona tenta me
explicar, há anos: "Eu conecto artisticamente pessoas de interesses
similares em eventos virtuais com temas socioambientais patrocinados por
empresas não governamentais que se utilizam ou não das peças criadas
via redes sociais para fomentar a discussão política das pessoas não
conectadas". Quando a visitei ela passava o dia combinando baladas e a
noite curtindo as baladas.
Na fila do cinema, semana passada, um cara de uns 30 e muitos anos
tentava convencer uma jovenzinha de 20 e poucos: "Eu trabalho com
projetos". Ela insistiu: "Mas quais?". "Projetos artísticos". Ela não
desistia: "Mas pra que área?". Ele suava, esmagava as sobrancelhas:
"Para todas". A garota então pegou o celular na bolsa e, totalmente
tomada por sua bolha narcísica (não à toa estamos tão ensimesmados, o
outro não tem valido muito a pena), passou a ignorá-lo. Decidido a
reverter o jogo, o "sem profissão" foi comprar duas águas e voltou
contando "um dos meus projetos talvez seja contemplado". Ela apenas
sorriu, prometendo a si mesma jamais entrar novamente no Tinder.
O site de um conhecido diz que ele é professor de expressão corporal
focado em danças nativas, ator coadjuvante de uma websérie patrocinada
por uma marca de antiácidos, escritor premiado no Festival de Contos de
Terror de sua cidade, produtor de vídeo marketing, DJ, chef de cozinha e
consultor de moda. Em suma: ele está desempregado desde que o conheço.
E o eterno intelectual "ainda não estou pronto"? Ele está no 20º
mestrado ou jamais saiu da página 20 do seu livro. O pavor de expor seus
buracos é tamanho que ele próprio faz morada quentinha no furo do seu
discurso. Vai passar a vida achando que os amigos que ganham dinheiro
são mais burros do que ele, afinal, se o cara estivesse lendo e se
preparando, não estaria trabalhando. Talvez ganhe mil reais em algum
prêmio super cabeça de literatura e fique incomodado com a fortuna. Se
deu certo é porque ele não tentou o suficiente!
Outra coisa que não me conformo: a quantidade de militantes de redes
sociais que não trabalham. Me fale, sinceramente, como você pretende
ajudar a causa indígena se a cerveja da sua geladeira é a que sobrou da
festa do seu amigo e você, na cara dura, trouxe umas pra casa? Miga,
passar o dia no Facebook "lutando" por melhores salários e pagar as
contas com a grana do (sugar) daddy não vale.
Tenho mais carinho pelos que desistiram de explicar o inexplicável e
mandam na lata os clássicos "estou em período sabático para
autoconhecimento (há 30 anos)", "eu sou feliz" ou "eu vivo a vida".
Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo.
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