Uma das áreas em que modismos mais fazem estrago é a educação. Mas, quem
pensa que esses modismos vêm apenas do universo da autoajuda para serem
usados nas escolas, se engana. As bobagens também vêm de lugares onde
se reúnem pessoas inteligentes e competitivas e visam a universidade. Há
uma nova bobagem no mercado das modinhas: o idiota da singularidade. O
que é isso? Já te explico.
Sou um animal da academia. Adoro seu cotidiano. Dar aulas, para mim, é
um pequeno pedaço do paraíso. Sim, critico muito a academia porque ela
virou, em grande parte, um espaço para gente fazer (apenas) ascensão
social via manipulação dos colegiados a favor de grupos de poder
institucional, portanto, um antro da mais baixa política (o PMDB é
ingênuo se comparado às baixarias de muitos colegiados).
Isso para não falar na burocracia infinita a serviço de uma produção
quase irrelevante em termos do que as pessoas reais buscam no
conhecimento. Dito isso, vamos ao que interessa hoje.
A nova bobagem é bem chique. Vem do Vale do Silício e vem temperada no
velho argumento de que a universidade como conhecemos acabou. Veja:
claro que mudanças ocorrem. Da Idade Média para cá, a teologia perdeu
seu lugar máximo para diversas formas de conhecimento. E a ideia,
defendida pelos gurus do Vale do Silício, de que a universidade pode ser
menos burocrática e voltada para a criatividade dos alunos e
professores, não é seu grande problema. Na verdade, concordo com essa
ideia. Estimular a criatividade e a ousadia é bom. A besteira vem
depois.
A modinha para bobos é que os gurus da "singularidade" (como se
autodefinem) querem destruir a universidade para reduzi-la a "mera"
técnica. Segundo eles, a criatividade deve ter apenas oito focos em
mente: alimentar toda a população do planeta, garantir o acesso a água
potável, educação para todos, serviços básicos de saúde, energia
sustentável, segurança, cuidado com o meio ambiente e acabar com a
pobreza.
Depois disso tudo, seremos felizes em nossas gaiolas. O sonho desses
gurus é fazer da humanidade um parque temático de idiotas alegres.
Ingênuos talvez não vejam o engodo de uma ideia como essa. Esses gurus
nunca devem ter lido o "Admirável Mundo Novo" de Aldous Huxley e,
portanto, não sabem que a perfeição técnica é inimiga da humanidade.
Só iniciantes na inteligência, ou gente que quer destruir a capacidade
humana de pensar, imaginam que reduzir a universidade a uma oficina para
deixar o mundo limpinho seja uma ideia nova ou a função do pensamento
na espécie.
Há 17 mil anos, em Lascaux, na França, homens de Cro-Magnon (sapiens
como nós) pintaram imagens xamânicas em busca de entender a si mesmos e
ao mundo para além da tinta que usavam para pintar essas imagens. Logo, o
homem de Cro-Magnon estava à frente dos gurus da singularidade: para
estes, as tintas são tudo que importa.
O filme "A Guerra do Fogo" (1981), de Jean-Jacques Annaud, mostra na sua
cena final o casal principal após "vencer" a guerra do fogo na
pré-história, sentados ao lado do fogo, ela grávida, e ambos
contemplando a barriga dela, e a Lua brilhando na vastidão escura do
céu.
Nossos idiotas da singularidade provavelmente acham que, colocando uma
luz de xênon no universo, resolveriam a questão presente nessa cena. A
questão é: quem somos nós? De onde viemos? Para onde vamos? Qual nossa
relação com o universo? Mesmo se você é niilista, essas questões
continuam existindo.
Claro que ciência e técnica são essenciais. O erro desses gurus é achar
que o problema todo da humanidade se resolve com um empreiteiro
competente.
Mas nem tudo está perdido. Um representante de outro gigante do
conhecimento nos EUA, o reitor do MIT, Rafael Reif, defende a relação
entre alta competitividade em formação tecnológica e as humanidades,
justamente porque, segundo ele, é nesse encontro das duas grandes áreas
que se produz o aluno que eles buscam: pessoas raras e inquietas.
Espero que, aqui no Brasil, nenhum "empreiteiro da educação" embarque
nesse novo modismo e tente fazer das universidades empresas de faxina.
Texto de Luiz Felipe Pondé, na Folha de São Paulo.
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