sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Em peça de John Logan, Rothko acerta suas contas com o público e com Deus

Baltazar era rei da Babilônia, e ordenou um banquete. Taças de ouro, roubadas do templo dos hebreus, cobriam a mesa. Cortesãos e concubinas bebiam o vinho dessas taças, e "louvavam os deuses de ouro, de prata, de bronze, de ferro, de madeira e de pedra".
A história está na Bíblia (Daniel 5), e assim prossegue. No meio do banquete, dedos de mão humana surgiram do alto e inscreveram palavras hebraicas na parede.
"Mene, mene, tequel, parsim". Chamado pelo rei, o profeta bíblico traduz: "Deus contou os dias do teu reinado e determinou seu fim. Foste pesado na balança e achado em falta".
Naquela mesma noite Baltazar foi morto pelos exércitos de Dario.
A passagem bíblica é citada na peça "Vermelho", de John Logan, que reestreia em São Paulo no Tuca.
Antonio Fagundes é o pintor americano Mark Rothko (1903-1970), e seu filho Bruno Fagundes interpreta Ken, seu jovem ajudante. Sem perder por um minuto a atenção do espectador, a peça se limita a esses dois personagens, que dialogam sobre a arte e a morte (Rothko deu fim à própria vida cortando os pulsos).
No mesmo dia de seu suicídio, a Tate Gallery de Londres recebeu uma das maiores obras do pintor abstrato. Tratava-se de uma série de painéis encomendada pelo arquiteto Philip Johnson, por uma quantia que hoje seria equivalente a mais de US$ 2 milhões.
A obra serviria para decorar o chiquérrimo restaurante Four Seasons, num edifício projetado por Johnson e Mies van der Rohe, o Seagram Building. A peça de John Logan acompanha o trabalho e os pensamentos de Rothko enquanto cuida de atender à encomenda. Ele esbraveja o tempo todo contra Ken, o jovem assistente; a simpatia e o carisma de Antonio Fagundes nos impedem de detestá-lo.
Há a considerar que Rothko também diz muitas verdades. "Vocês hoje em dia", reclama o pintor, acham tudo "legal". A televisão torna tudo feliz, tudo é muito divertido, temos o direito constitucional ao entretenimento permanente...
Ele imita o otimismo americano dos anos 1950. "Como você está? Legal. Como foi seu dia? Legal. Como você se sente? Legal. O que achou do quadro? Legal. Vamos jantar? Legal..."
Rothko explode. (Traduzo da versão em inglês, na peça está melhor.) Não, nada está "legal". Coisa nenhuma está "legal"!
O mau humor do mestre expressionista se revela também numa discussão com seu ajudante. Rothko não se contenta quando este pronuncia, simplesmente, a palavra "vermelho". Afinal, há o vermelho da ferrugem, do rosto de quem se envergonha, do sangue coagulado...
Os dois personagens trocam ferozmente seus próprios exemplos daquela cor. "Papai Noel", diz o jovem. "Satanás", responde Rothko.
Só que o negro vai tomando conta dos quadros do pintor. Buscando, por meio de finas camadas de tinta superposta, criar uma pulsação, uma latência de cores e mais cores, a pintura de Rothko provavelmente só funciona bem se vista ao vivo, com iluminação própria. Nas reproduções, vemos grandes retângulos imprecisos, bonitos na superfície de seus tons, mas talvez algo estáticos e decorativos.
Ele pensava nos quadros quase como pessoas vivas, que "falam", que interpelam o espectador automático e desumanizado, pronto a achar tudo "legal".
"Quero estragar o apetite de todo filho da puta que estiver no restaurante", gaba-se Rothko ao pensar na sua encomenda de muitos milhões de dólares.
A contradição se torna clara, entretanto. Toda a missão agônica e espiritual daqueles painéis não resistiria ao comercialismo do projeto e aos próprios interesses financeiros de Rothko.
Não conto mais da peça, que de todo modo vive no detalhe dos diálogos, nos muitos matizes e tons da interpretação, e nos maravilhosos efeitos de luz a cargo de Ney Bonfante. Mas fico pensando se os quadros de Rothko, num restaurante finíssimo, não teriam servido como as palavras de Deus escritas na parede, durante o festim de Baltazar: "Os dias de teu reino estão contados, foste pesado na balança e achado em falta".
Dentro ou fora das paredes de um restaurante, toda grande arte está exposta à indiferença, ao turismo, à procura de status, ao comércio e à ostentação.
Talvez, para que a arte signifique alguma coisa, cada espectador tenha de encará-la como um aviso: "Estás em falta". Sem sentir essa falta, vale mais a pena olhar para o cardápio do restaurante.


Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo

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