quinta-feira, 11 de agosto de 2016

A arte que pode(ria) nos salvar

A abertura da Olimpíada foi mesmo algo grandioso, sob muitos aspectos. O bom gosto e a sensibilidade do grupo que concebeu e dirigiu o espetáculo são dignos de eterno registro, sobretudo no que diz respeito à adoção de temas brasileiros e de obras de nobres artistas brasileiros de diversos períodos e matizes.
Como já afirmei um sem-número de vezes neste espaço, os textos dialogam, as obras de arte dialogam, e esse diálogo forma a intertextualidade: para que se compreenda uma obra, é necessário que se conheçam e compreendam as obras com as quais aquela obra dialoga.
Um caso concreto: quando começaram a emergir vários edifícios, que "subiam" e "desciam" concomitantemente ao surgimento de pessoas, que andavam sobre esses edifícios e pulavam de um a outro, ouviram-se acordes de "Construção", de Chico Buarque, apresentada sem letra.
Na gravação de Chico, de 1971, o belo arranjo de "Construção" foi feito por Rogério Duprat (1932-2006). Esse arranjo dialoga com a melodia e a letra da canção, criando sons que lembram e intensificam os ruídos que se ouvem numa grande cidade e acentuando o destino trágico do operário.
É imperativo destacar o caráter metalinguístico do espetáculo, no qual uma linguagem se valeu de outra para a sua descrição e assim sucessivamente. O subir e descer dos prédios com as pessoas a acompanhar esse subir e descer e a pular de um prédio a outro foi "explicado" pela canção "Construção", cuja letra, por sua vez, "explica" o que envolve a construção de um edifício e de um texto (o próprio texto) e, sobretudo, o que vive (e não vive e sonha) quem constrói esse edifício.
Construída com versos alexandrinos (de doze sílabas poéticas) e esdrúxulos (que terminam numa proparoxítona), a letra de "Construção" forma um grande mosaico, já que seus versos alternam o "esqueleto" e a palavra final, numa combinação que gera "um desenho mágico".
E o grande Drummond, com o mais que antológico e atualíssimo poema "A Flor e a Náusea", que, por sinal, já citei mais de uma vez neste espaço e que foi dito magnificamente pela grande Fernanda Montenegro na abertura dos Jogos Olímpicos? "O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera", dizem os versos de Drummond.
Aí vem a inevitável pergunta: qual é a parcela de brasileiros (letrados ou iletrados, da nossa Bélgica ou da nossa Índia, como bem lembrou Juca Kfouri) capazes de entender todas essas referências, que integram a realidade de todos nós? O que faz a escola em relação a isso?
O que fazemos com toda essa beleza, caro leitor? Que lições tiramos desse e de outros mágicos desfiles de obras e fatos do nosso lado criativo, talentoso, brilhante? Quanto disso chega ao nosso dia a dia? O que dizer do contraste que há entre a nobreza de Paulinho da Viola a entoar sublimemente o nosso hino e a boçalidade nossa de cada dia?
Que desperdício de talento, Deus meu! Como diz Caetano (outro que desfilou sua nobre arte na sexta) em "Vamo Cumê", "Quem vai... e fazer desta vergonha uma nação?".
Em tempo: um puxão de orelhas nos criadores do espetáculo, por não incluírem a imagem de Vinicius de Moraes durante "Garota de Ipanema", da qual é coautor. Imperdoável.
Não vejo salvação fora da educação e da arte, da nobre arte, que, por sinal, temos de sobra. Que encontremos o caminho para que a nossa nobre arte nos salve! É isso.


Texto de Pasquale Cipro Neto, na Folha de São Paulo

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