sábado, 27 de agosto de 2016

A mão fria de agosto

Ajeitou-se no catre, espichou bem as pernas já magras sem as carnes rígidas, mexeu os dedos imitando estar segurando as rédeas firmes como daquela feita que fora visitar Flora pela primeira vez. Olhou para o teto e ficou a admirar o picumã do rancho que tapava parte dos caibros, os mesmos caibros que ajudara a falquejar, um a um, quando ergueu aquela casinha simples ali no Durasnal, ao lado de um velho cinamomo, depois cercou de taquara, abriu um poço, fez uma ramada na frente. A ramada e as taquaras não existem mais, ele também não aguentou os tirões da vida, como as árvores e moirões, envelheceu e apodreceu. Foi esquecido, no início nada sentira, mas sente a falta dos filhos, sente a falta de Flora, do corpo da mulher que aquecia a cama nestes invernos tão gelados da Vila Rica. La pucha, mas como faz frio este tal de mês de agosto.
Vira o rosto e o lampião a querosene ainda alumia a fotografia deles, a única que ainda sobrou em casa. Onde foram parar as outras? Ali estão, na frente da casa, ele sentado, Flora ao seu lado, ambos rodeados pelos filhos. Então diminui a chama dançarina do lampião, fecha os olhos e fica a recordar (como faz sempre, noite após noite, nos últimos anos) da vida linda que tiveram durante alguns anos. Mas como dizia seu Neto, o capataz lá da Estância da Divisa, “Nada é para sempre”.  Não é mesmo, isso só descobriu bem depois, com o tempo a rodar. A gente quer que aquilo perdure, não passe nunca, mas não adianta. Os filhos e filhas crescem ligeiro, viram homens, viram mulheres e,  como as perdizes, soltam as asas para nunca mais voltar. No início voltam, aos finais de semana, depois essas visitas fugazes vão rareando, só de vez em quando, e, por fim, montam suas famílias e adeus.
Agora este vento desgranido uivando no oitão. Rapa daqui seu trabuzana, descomungado. É bem nesta hora da madrugada que lembra de um temporal muitos anos atrás, que levantou as folhas de zinco. Uma delas voou e cortou o pescoço da Nina, a vaca Jérsey que estava no potreiro ao lado. Tiveram que costurar o corte com linha de pesca, mas a Nina sobreviveu ainda muitos anos e deu leite para todos os filhos. Era corajosa. Flora também foi uma mulher corajosa, valente, sempre acordando cedo, preparando o café, tirando leite, arrumando os filhos para o colégio, cuidando da horta e das pequena  lavoura com mandioca, milho e  feijão. Tinha as mãos cheias de sulcos, calos, mas eram mãos doces e quentes, diferente dessa mão fria de agosto que vem chegando, querendo buscá-lo, no meio da madrugada, para atravessar o grande açude da vida. Ele não, nunca fora assim tão forte. Sente-se covarde, medroso.
Tenta levantar, já não consegue. Quer levantar mão até a caneca de água, mas seus músculos não lhe atendem mais. Então, de repente, começa a sentir um calafrio desde a ponta dos dedos dos pé, que sobe pelas canelas, subindo pelos joelhos. Sente palpitações no peito, abre os olhos e já não vê os caibros, o corpo estremece e o velho tropeiro vira a cabeça, olhos fixos no escuro da noite. No estertor, parece ter visto o vulto de Flora acudindo-lhe, por isso morreu com a mão estendida…

Texto de Paulo Mendes, no blogue Campereadas.

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