segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Armando Freitas Filho beira a narrativa em novos poemas

Armando Freitas Filho beira a narrativa em novos poemas

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA


Reuniões da poesia completa de um autor vivo sempre são provisórias. No caso de Armando Freitas Filho, porém, a publicação de "Máquina de Escrever" (2003) teve por efeito tornar mais nítidas as continuidades e mudanças entre o conjunto de seus títulos publicados até então e os livros seguintes.
As continuidades são identificáveis na própria estrutura dos livros. Pois se "Máquina de Escrever" trazia, junto aos anteriores (começando por "Palavra", de 1963, e terminando por "Fio Terra", de 2000), o livro inédito "Numeral/Nominal", os quatro livros seguintes deram sequência à série "Numeral" —com poemas encadeados por uma numeração que progride de uma coletânea a outra.
Neste "Rol", a seção "Numeral" começa pelo poema 138 e vai até o 177, com versos que oscilam entre instantâneos do cotidiano e experiências de leitura, como os que alinham signos enigmáticos de Kafka e de Borges.
Cada poema de "Numeral" traz uma data, menos com o intuito de demarcar a progressão da série do que de singularizar no tempo cada percepção do real. Esse esforço de objetivação —marca de Armando—, essa tentativa de salvar os entes da deglutição pela cadência numérica que o próprio poeta se impôs, ilumina retrospectivamente a primeira parte de "Rol", em que ele afirma: "Escrevo com meus erros rigorosos".
"Escritor, Escritório", o longo poema de abertura do livro (30 séries de versos em 17 páginas), esmiúça as aflições e incertezas da escrita: "E se for hábito antigo que virou vício/ perdendo toda a virtude, reduzido/ a um jogo de paciência para matar o tempo/ através de uma forma indolor na casa quieta?".
À solidão e à "mosca oftálmica" da velhice se somam a angústia da influência (o grande autor do passado como "monstro mesclado de corpo e letra") e o desencontro com leitores e críticos.
No entanto, esses poemas contrastam com a feição áspera de sua poética até "Máquina de Escrever". Com menos arestas e uma sintaxe mais contínua, "Rol" beira a narrativa —como no conjunto da série "O Caso Ana C.", que relembra o suicídio da poeta (e ex-namorada) Ana Cristina Cesar.


Reprodução da Folha de São Paulo

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