sexta-feira, 8 de julho de 2016

Uma vez Michel Rocard

Michel Rocard (1930-2016) se foi. No sábado, 02/07, ele nos deixou. Um câncer – após uma hemorragia cerebral em 2007 e um ataque cardíaco em 2012 – o ceifou. A cartografia mundial da esquerda perdeu um grande militante. A paisagem política europeia e francesa, um sincero, desejoso e corajoso homem de estado. Os políticos e aspirantes políticos de todas as colorações, uma referência de exigência e entusiasmo vis-à-vis da coisa pública. Impossível ser indiferente ao desaparecimento de Michel Rocard.
Nascido em 1930, Michel Rocard carregava a marca da ferocidade humana das grandes guerras mundiais. A ocupação nazista da França imprimiria nele a necessidade e o dever de fazer política. Desde os seus mais tenros anos, ele iniciou sua militância à esquerda. Seus combates decisivos foram pela recomposição da dignidade dos povos.
Em fins dos anos de 1940, ele ingressaria na SFIO – Section française de l’internationale ouvrière. Adiante, fundaria o PSA – Parti socialiste autonome. Nos anos de 1960 aderiria ao PSU – Parti socialiste unifié. Até que em 1974 se filia ao PS – Parti socialiste – do qual jamais sairia.
A primeira grande causa de sua geração no após-1945 foi a guerra na Argélia. Desde o início ele advogou pela descolonização. Seu engajamento na questão argelina o projetaria como liderança política emergente na esquerda francesa e europeia dos anos de 1960 que permitiria sua ascensão à condição de candidato à presidência da República em 1969 pelo PSU.
Desde o início dos anos de 1970, seu interesse político visou a modernização da esquerda na França. Sua démarche ficou conhecida como “segunda esquerda”. Seu mote era o reformismo com o distanciamento de manifestações ortodoxas do marxismo, do socialismo e do comunismo e uma aproximação a certo realismo e pragmatismo político e econômico a partir da disposição para diálogo não-sectário com tendências políticas republicanas para além dos círculos de esquerda. Tudo isso o tornaria doravante eterno corpo estranho no interior do PS e, malgrado respeitado, um ser marginal e marginalizado no interior do conjunto da esquerda francesa, europeia e mundial.
Seus inimigos e adversários foram se multiplicando em todas as agremiações políticas. Especialmente na França. Mas isso não o impediu de, em 1980, ser o favorito do PS para as eleições presidenciais de 1981. Mas em seu caminho existia François Mitterrand (1916-1996).
Mitterrand foi o principal responsável pela marginalização de Michel Rocard no interior do PS antes e depois de 1981. A incompatibilidade de gênio entre eles era explícita e eles nada faziam reduzi-las. Viviam a praticavam “mundos” diferentes.
Durante a primeira presidência Mitterrand (1981-1988), Michel Rocard não assumiu que postos terciários de pouca visibilidade mesmo sendo um político massivamente popular. Apenas no segundo período Mitterrand (1988-1995), ele seria convocado para primeiro-ministro. Ficaria no cargo de apenas três anos. De 1988 a 1991. Sua grande contribuição, no plano geoestratégico, foi claramente a incorporação da questão ambiental como prioridade do governo e a discussão do lugar do Ocidente no mundo após o desaparecimento da URSS.
Desse período advém sua famosa máxima “não podemos acolher toda a miséria do mundo”.
Fora do cargo, ele seria primeiro secretário do PS de 1993 a 1994, quando seria eleito deputado europeu e representaria seu país em Bruxelas até 2009.
Seu eterno remorso sempre foi a convicção de que poderia – e deveria – ter sido presidente da França. O destino não o quis.
Todos que conviveram com esse exímio homem político de esquerda – e toda a geração de latino-americanos e especialmente brasileiros de esquerda exilada na Europa nos anos sombrios dos regimes militares na região pode testemunhar – encontravam nele um homem convivial, generoso, afeito à bonomia, de fácil integração, como excelente capacidade de trabalho e imaginação.
Seu maior handicap talvez fora a sua franqueza. Seu estilo franco e direto o tornou demasiado incômodo. Isso o impediria de galgar postos na estrutura política francesa.
Ele próprio reconhecia – vide suas memórias Si la gauche savait (2005), Si ça vous amuse (2010) e seu vide seu La Gauche n'a plus le droit à l'erreur, com Pierre Larrouturou, (2013) – suas inabilidades para o cinismo, a demagogia, o complô.
Cinismo, demagogia e complô sempre foram artifícios da manifestação política. Mas nos tempos atuais esses artifícios sobrepujaram e quase eliminaram todos os demais. O produto desse processo vem sendo a afirmação do império da mediocridade política teórica e prática em toda parte. Dignidade política e dignidade na política estão virando avis rara. Michel Rocard encarnou como ninguém o senso de dignidade teórica e prática na política. Nesse sentido, seu maior legado talvez seja o seu esforço na contenção dessa mediocrização corrente. Após sua morte, a urgência onipresente consiste fortemente na emergência de homens públicos capazes de praticar esse legado.

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