No jornalismo antigo, qualquer assalto à luz do dia provocava a aparição de um bonito clichê jornalístico, o da crescente "ousadia dos meliantes".
Já existia, naqueles tempos do onça, o espanto diante da "desfaçatez dos nossos políticos", sempre capazes de negar acusações com um "cinismo revoltante".
A "voz rouca das urnas", a "desabalada carreira", os "curiosos" que "acorriam ao local do acidente"... Não existiam "pessoas" ou "cidadãos" nas ruas: havia "populares".
Expressões assim eram boas demais para que fossem usadas apenas uma vez. Perdeu-se, acho, essa qualidade literária no jornalismo contemporâneo. Aliás, era uma qualidade ao mesmo tempo literária e antiliterária.
O adjetivo surpreendente e expressivo, o substantivo peculiar, juntavam-se numa fórmula que, rapidamente, terminava perdendo seu sabor de invenção. Mas, por seu toque erudito e formal, talvez esse estilo fosse preferível ao do que vigora no jornalismo de agora, menos tributário da literatura do que das ciências sociais.
"Setores da população", "decréscimo nos níveis de criminalidade", "viés de alta": talvez essas expressões sejam inevitáveis, já que os próprios fatos, hoje em dia, são menos acontecimentos isolados do que "pontos" numa série (ou curva?) estatística, a qual conhece suas "inflexões" e seus "picos" e "vales".
Isso não se confunde com o "jornalês" contemporâneo. Aqui, vemos o esforço de combinar o tom científico e matemático com alguma dramaticidade e sensação, típicas de qualquer noticiário que se preze.
Surgem então o índice de desemprego que "dispara", as exportações que "patinam", a declaração de um político que "detona" uma crise em seu partido.
Bom, criticar tantos clichês acaba virando um clichê também, ou, para ser mais exato, um lugar-comum. A crítica do estilo pode acabar impondo o silêncio geral –e sem dúvida o melhor modo de exercê-la seria criando coisas novas em vez de condenar as velhas.
Digo tudo isso um pouco por acaso, já que me lembrei da antiga "ousadia dos meliantes" ao ouvir relatos a respeito de um novo problema social. Trata-se do "quase assalto". Com a disseminação do crack, desaparece a figura do mendigo tradicional. Aquele da porta de igreja, da "esmolinha pelo amor de Deus".
Eu estava perto da igreja da Consolação, aí pelas dez da noite. Surge da escuridão uma figura de cobertor e capuz, que me faz parar. "Sabe que hoje é meu aniversário?"
Disse isso, e pediu cinco reais. Na inocência, tirei minha carteira. Ele poderia tê-la arrancado. Viu que eu tinha dinheiro, e subiu o preço. "Dez reais". Contaram-me depois que, na ansiedade, alguns noias vão exigindo "quinze, vinte, cinquenta, tudo".
No processo, ameaçam o doador, mas não parece que estejam armados. Chegamos ao ponto, em todo caso, de ficar pechinchando com mendigos...
Naquela região do centro paulistano, há mesas de bar na calçada. Contam-me que os dependentes de crack simplesmente passam perto e metem a mão no prato de batata frita, ou arrancam do cliente a garrafa de cerveja.
As faixas de ciclistas, por sua vez, criaram por ali um novo tipo de risco à segurança. Quem deixa o celular na mesinha vê um garoto que passa correndo de bicicleta e leva o aparelho.
Espanta-me, em todo caso, que ainda haja clientes nos bares por ali.
É como se antigas formas de convívio tentassem resistir a um tipo de coisa que já não representa convívio nenhum.
Antigamente, até um assalto tinha suas regras. Voltamos aos clichês, aos bons clichês. "A bolsa ou a vida". "Isto é um assalto" –a frase não aparecia apenas nos filmes. Soube de um velho motorista português, numa casa de família, que diante do clássico anúncio respondeu, apavorado: "Eu já tinha percebido".
O mendigo –ainda que estivesse "à margem da sociedade", como se diz– parecia, afinal de contas, "saber o seu lugar". Hoje, dizem-me que esses quase-assaltantes estão sempre em trânsito.
Um motorista de táxi, no ponto da Consolação, contou vinte deles passando por ali no espaço de uma hora. "Espaço de uma hora": mais uma expressão feia para o que, antigamente, era o "decurso de uma hora", ou, melhor ainda, "um breve lapso de tempo". Enquanto pensa em teclar a melhor palavra, preste atenção para não levarem seu celular.
Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo.
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